quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Bernard de Clairvaux - Os quatro graus do Amor




O primeiro grau do amor: amar a si mesmo em prol de si mesmo

O amor é uma das quatro afeições, as quais não é necessário nomear pois todos as conhecem. E porque o amor é natural, é apenas correto amar o Autor da natureza em primeiro lugar. Desse modo o primeiro e mais grandioso mandamento é, "Amarás o Senhor teu Deus" (Deut. 6:5; Mat. 22:37-39). Mas a natureza é tão vacilante e fraca que ela tem que amar a si própria primeiro. Esse tipo de amor significa amar a si mesmo de maneira egoísta. Como está escrito: "o espiritual não vem em primeiro. O natural vem primeiro e é seguido pelo espiritual" (1cor 16:46). Isso não é o que nos é ordenado, mas o que a natureza dita: "ninguém jamais odiou seu próprio corpo" (Efé. 5:29). Mas se, como é o mais provável, esse amor próprio torna-se excessivo e sensual, então um mandamento o detém: "você deve amar o seu próximo como a ti mesmo." (Lev. 19:18; Mat. 22:37-39) E isto é certo: aquele que compartilha de nossa natureza deveria compartilhar de nosso amor, o qual é o fruto da natureza. Assim, se você acha um fardo servir aos prazeres de seu irmão, você deveria mortificar esses mesmos prazeres em você mesmo para evitar o pecado.
Acalente a si mesmo tão ternamente quanto você desejar, contanto que você se lembre de mostrar a mesma indulgência para com o seus semelhantes. Esse é o fio condutor da temperança imposto sobre você pela lei da vida e da consciência, parar de seguir os seus próprios desejos até a destruição ou de se tornar escravizado pelas paixões que são as inimigas do seu verdadeiro bem-estar. É muito melhor compartilhar os seus prazeres com seus semelhantes do que com esses inimigos.
Se, assim como o filho de Siraque adverte, você refrear de favorecer os seus apetites e não perseguir os seus desejos (Ecles. 18:30). Então você achará mais fácil se abster dos desejos corpóreos do que guerrear contra a sua alma, e a dividir com os seus semelhantes o que você recusou de dar a seus próprios desejos.
Um amor que tenha temperança e retidão pratica a auto-negação afim de dar ao seu semelhante o que ele necessita. Dessa forma, o nosso amor egoísta torna-se  verdadeiramente social, incluindo os nossos próximos nesse círculo.
E se você for levado à pobreza devido a tal benevolência? Simples. Reze com toda confiança para Aquele que dá a todas as pessoas generosamente e sem achar faltas (Tiago 1:5), que abre sua mão e abundantemente preenche todas as coisas vivas. (Salmos 145:16)
Aquele que dá à maioria das pessoas mais do que elas necessitam não falhará em dar-lhe as necessidades da vida, como ele prometeu: "busque primeiro o Reino de Deus e todas essas coisas lhe serão acrescentadas. (Lucas 12:31)
Deus promete livremente todas as coisas necessárias para aqueles que negam a si mesmos pelo amor aos seus semelhantes. Mas se formos amar ao próximo como deveríamos, não podemos esquecer de Deus, pois é apenas em Deus que podemos pagar essa dívida de amor apropriadamente. Você não pode amar seu semelhante em Deus a não ser que você ame ao próprio Deus. Isso significa que devemos amar a Deus em primeiro lugar para podermos amar nossos semelhantes Nele. Isso também, como todas as coisas boas, é o fazer de Deus, pois foi Ele que nos deu a habilidade de amar. Aquele que criou a natureza a sustenta e protege para sempre. Sem Ele a natureza não poderia ter iniciado; sem Ele ela não pode continuar.
Para fazer-nos perceber isso e privar-nos de atribuir a beneficência de nosso Criador à nós mesmos, Deus decidiu em Sua sabedoria que nós devêssemos sofrer aflições. Assim, quando a força humana falha e Deus vem em nosso socorro, deveríamos glorifica-Lo, assim como está escrito: "invoca-me nos momentos de tribulação: eu vos ouvirei e tu me glorificarás. (Salmo. 50-15)
É assim que nós, embora animais e carnais por natureza e amantes de nós mesmos, começamos a amar a Deus através de nosso próprio amor por nós mesmos, quando aprendemos que em Deus podemos realizar qualquer coisa e sem Deus não podemos fazer nada.


O segundo e o terceiro graus de amor: amar a Deus em prol do si; e amar a Deus em prol de Deus

Portanto, começamos amando a Deus, não em prol Dele mesmo mas de nós mesmos. É bom que saibamos o quão pouco podemos fazer por nós mesmos e o quanto podemos fazer com a ajuda de Deus e assim vivermos com retidão perante a Deus, nosso suporte confiável. Mas quando problemas recorrentes nos forçam a voltarmo-nos a Deus para pedir ajuda, mesmo um coração duro como ferro, frio como mármore, seria amaciado pela bondade do Salvador, de modo que nós não amamos a Deus de maneira totalmente egoísta, mas também simplesmente porque Ele é Deus.
Se problemas frequentes nos levam à oração frequente, certamente experimentaremos e veremos o quão bom é o Senhor (salmos 34:8). Então, percebendo o quão bom Ele é, encontramo-nos inclinados a amá-Lo sem egoísmo, até mais poderosamente do que quando somos atraídos por nossas próprias necessidades para amá-Lo de forma egoísta.
Lembra-se como os samaritanos falaram para a mulher que anunciou que era Cristo que estava na fonte, "agora nós acreditamos, não porque você nos contou, mas porque nós mesmos escutamos-no e sabemos que esse é, de fato, Cristo, o salvador do mundo."
Da mesma forma, damos testemunho à nossa própria natureza carnal, "agora amamos a Deus, não por causa de nossas próprias necessidades, mas porque experimentamos e vimos o quão benevolente é o Senhor."
Nossos desejos mundanos têm um discurso próprio, difundindo os presentes que receberam de Deus. Uma vez que isso é reconhecido não será difícil de cumprir o mandamento que concerne amar ao próximo, pois aquele que verdadeiramente ama a Deus ama as criaturas de Deus. Tal amor é puro e não encontra fardo no mandamento que nos diz para purificarmos nossas almas, obedecendo a verdade num amor por nossos irmãos que não é fingido. Quando amamos como deveríamos, consideramos esse mandamento apenas correto. Tal amor é digno de reconhecimento porque é espontâneo. É puro, porque é mostrado não em palavras nem pela língua, mas em ações e em verdade. (1João 3:18)
Ele é justo, pois retribui aquilo que recebeu. Quem quer que ame dessa forma e que já não busca atender seus próprios desejos, mas sim aos de Cristo, assim como Jesus não buscou seu próprio bem-estar, mas o nosso - ou melhor, buscou a nós. Tal amor foi o que fez o salmista  cantar: "dai graças ao Senhor, pois Ele é gracioso."
Aquele que louva a Deus por Sua bondade essencial e não meramente pelos fins que Ele concedeu, ama verdadeiramente a Deus em prol de Deus, e não de forma egoísta. O
Salmista não estava falando de tal amor quando disse: "enquanto fizer bem para você os homens falarão bem de você." (Salmo 49:18)
O terceiro grau de amor que vimos agora é amar a Deus em Sua própria consideração, somente porque Ele é Deus.


O quarto grau de amor: amar a si em prol de Deus

Quão abençoado é aquele que atinge o quarto grau de amor, no qual ele ama a si mesmo apenas para o benefício de Deus! Vossa retidão é como as mais fortes montanhas, Deus. Esse tipo de amor é a colina de Deus: "quem ascenderá a colina de Deus?"
"Se apenas eu tivesse asas como um pombo, eu voaria para longe e descansaria." "Seu tabernáculo é em Jerusalém e Sua morada em Sião." "Ai de mim, pois sou obrigado a habitar com Mosoc! (Salmos 24:3, 55:6, 76,2, 120,5)
Quando esta carne e este sangue, este pote de barro, que é o tabernáculo da minha alma, irá alcançar esse lugar? Quando minha alma, arrebatada pelo amor divino e completamente abnegada, como um vaso quebrado, irá ansiar apenas por Deus e unida a Ele será una em espírito com Ele? Quando ela irá exclamar: "minha carne e meu coração falham, mas Deus é a força de meu coração e minha herança eterna"? (Salmo 73:26)
Eu consideraria qualquer um que experimente tal arrebatamento nesta vida como abençoado e santo. Perder a si, mesmo que por um instante, como se você estivesse esvaziado, perdido e engolido em Deus - esse não é um amor humano e sim celestial.
Mas se um pobre mortal às vezes sente essa alegria celeste por um momento de êxtase, então essa vida miserável inveja a sua felicidade e a maldade das ninharias diárias perturbam-lhe esse corpo de morte puxando-lhe para baixo, as necessidades da carne são insistentes, as fraquezas da corrupção lhe induzem ao erro, mas acima de tudo o amor fraternal chama-lhe de volta ao dever - Que vergonha!
Aquela voz convoca-lhe a re-introduzir-se em sua própria vida, e ele irá clamar para sempre lamentavelmente, "Senhor, eu estou oprimido. Socorre-me! "[Isaías 38.14] e de novo,"que homem miserável  eu sou! Quem poderá me libertar deste corpo de morte? "[Rom. 7,24]. Se, como diz a Bíblia: "Deus fez tudo para a Sua própria glória" [Isaías. 43.7], certamente Suas criaturas devem submeter-se, o tanto quanto puderem, à Sua vontade.
Todo o nosso coração deve estar centrado Nele, de modo que sempre procuremos fazer somente a vontade Dele, e não agradar a nós mesmos. E felicidade real virá, não ao satisfazermos nossos desejos ou em prazeres passageiros, mas ao realizarmos a vontade de Deus para nós. É assim que nós oramos todos os dias: "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu." (Mateus 6:10)
Ó amor casto e santo! Ó doce e graciosa afeição! Ó objetivo limpo e purificado, bem lavado e purgado de qualquer egoísmo e adoçado pelo contato com a vontade de Deus!
Chegar a este estado é tornar-se semelhante a Deus. Como uma gota de água vertida no vinho se perde e toma a cor e o sabor do vinho; ou como uma barra de ferro, aquecida em brasa, torna-se como fogo em si, esquecendo sua própria natureza; ou como o ar, radiante com os raios de sol parece ser a própria luz; também, para aqueles que são santos todos os afetos humanos derretem-se dentro da vontade de Deus através alguma incrível mutação. Eu acredito que nesta vida, jamais possamos total e perfeitamente obedecer ao mandamento "amarás o Senhor teu Deus com todo o seu coração, alma, força e mente" [Lucas. 10,27]. Pois aqui na nossa posição, o coração deve estar preocupado com o corpo e a alma deve energizar a carne e a força deve proteger a si mesma e, pela graça de Deus, aumentar. Isso torna impossível dar todo o nosso ser a Deus e ansiar por nada além de Sua face, enquanto temos que submeter nossos planos e esperanças para estes nossos corpos doentios e frágeis. Assim, a alma pode esperar possuir o quarto grau de amor - ou melhor, ser possuída por ele - apenas quando tiver sido revestida com aquele corpo espiritual e imortal, que será perfeito, calmo, amável e que em tudo estará totalmente submetido ao Espírito. Esse grau nenhum esforço humano pode atingir: está no poder de Deus concede-Lo a quem Ele desejar.