terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Philokalia - Nikitas Stithatos - Sobre a Natureza Interior das Coisas (parte 2)


Nosso ensinamento reconhece três modos de vida: o carnal, o psíquico e o espiritual. Cada um deles é caracterizado por sua atitude particular perante a vida, distintiva para si e diferente à dos outros.


O modo carnal de vida é devotado inteiramente aos prazeres e desfrutes desta vida presente e não tem nada a ver com os modos de vida psíquico e espiritual, e não tem nem mesmo o desejo de adquiri-los. O modo psíquico, que está situado na fronteira entre o mal e a virtude, está preocupado com o cuidado e o fortalecimento do corpo e com o louvor dos homens, ele não apenas repudia os labores requeridos para a virtude mas que também rejeita a indulgência carnal. Ele evita tanto a virtude quanto o vício mas por razões opostas: a virtude porque ela requer esforço e disciplina; o vício porque isso implicaria em confiscar dele o louvor dos homens. O modo espiritual de vida, por outro lado, não tem nada em comum com esses dois outros modos e por conta disso não envolve o mal que pertence a ambos: ele é inteiramente livre de toda forma tanto de um quanto do outro. Vestido com as asas do amor e da ausência de paixões, ele paira sobre ambos, não fazendo nada que seja proibido e não é cerceado pelo mal.


Aqueles que seguem o modo de vida carnal e nos quais a vontade da carne é imperiosa – que são, muito simplesmente, carnais – não estão aptos a estarem de acordo com a vontade de Deus (Rom.8,8). Seu julgamento está eclipsado e são totalmente insensíveis aos raios da luz divina: as nuvens engolidoras das paixões são como muros altos que obstruem a resplandecência do Espírito e os deixa sem iluminação. Com os sentidos de suas almas mutilados, eles não podem aspirar a beleza espiritual de Deus e ver a luz da vida verdadeira e assim transcender a baixeza das coisas visíveis. É como se eles tivessem se tornado bestas, conscientes apenas deste mundo, com a dignidade de sua inteligência acorrentada às coisas sensórias e humanas. Eles lutam apenas pelo que é visível e corruptível e por conta disso lutam entre si, até mesmo sacrificando suas vidas por tais coisas, ávidos por riqueza, glória, pelos prazeres da carne e consideram a falta dessas coisas como um desastre. A tais pessoas se aplica a afirmação profética que vem da própria boca de Deus: “Meu Espírito não permanecerá nestes homens pois eles são carne” (Gen.6,3 LXX).


Aqueles que seguem o modo psíquico de vida e são portanto chamados de 'psíquicos' são como os deficientes mentais cujos membros não funcionam de maneira apropriada. Eles nunca esforçam-se em nome da virtude ou na prática dos mandamentos de Deus e refreiam de agir repreensivelmente simplesmente para obter a estima das outras pessoas. Estão totalmente sob o manejo do amor próprio, o mentor das paixões destrutivas, e buscam o que quer que crie riqueza física e prazer. Eles repudiam toda a tribulação, esforço e dificuldade compreendidos na busca da virtude e mimam nosso inimigo o corpo mais do que deveriam. Através de tal vida e comportamento, seu intelecto imbuído de paixões fica cada vez mais grosseiro e se torna impenetrável às realidades espirituais e divinas nas quais a alma é arrancada do mundo da matéria e eleva-se ao céu noético. Isso acontece com eles porque ainda estão possuídos pelo espírito da matéria, porque amam a si mesmos e escolhem fazer o que eles mesmos querem. Desprovidos do Espírito Santo, eles não compartilham de Seus dádivas. Como resultado, não apresentam nenhum fruto piedoso – amor por Deus e por seus semelhantes – nenhuma alegria no meio da pobreza e da tribulação, nenhuma paz de espírito, nenhuma fé profundamente enraizada, nem auto-controle abrangente. E também não experimentam remorso, lágrimas, humildade ou compaixão, mas são completamente preenchidos de presunção e arrogância. Desse modo eles são totalmente incapazes de compreender as profundezas do Espírito, pois não há uma luz orientadora dentro deles para abrir seu intelecto ao entendimento das Escrituras (Luc.24,45); de fato, não podem suportar nem mesmo ouvirem as outras pessoas falando de tais coisas. São Paulo estava muito certo quando disse que 'o homem psíquico não pode capturar as coisas espirituais: elas são loucura para ele, ele não está ciente de que a lei é espiritual e deve ser discernida espiritualmente' (1Cor.2,14).


Aqueles que 'vivem pelo Espírito' (Gal.5,25) e são totalmente comprometidos com a vida espiritual, vivem de acordo com a vontade de Deus. Em todos os momentos eles trabalham para purificar sua alma e para manter os Mandamentos de Deus, gastando seu sangue em seu amor por Ele. Eles purificam a carne através de jejuns e vigílias, refinam as impurezas de seu coração com lágrimas, mortificam suas tendências materialistas através de privações ascéticas, enchem o intelecto de luz através de oração e meditação, tornando-o translúcido e ao renunciarem suas próprias vontades eles separam-se do apego apaixonado ao corpo e devotam-se somente ao Espírito. Como resultado todos reconhecem-nos como espirituais e corretamente se referem a eles como tal. Conforme se aproximam do estado de ausência de paixões e de amor, eles ascendem ao estado de contemplação da essência interna das coisas criadas e dali adquirem o conhecimento do ser criado que é outorgado pela sabedoria oculta de Deus (1Cor.2,7) e concedido apenas àqueles que elevaram-se acima do estado baixo do corpo. Desse modo, ao passarem para além de todas as experiências sensoriais deste mundo e entrarem com uma mente iluminada nos reinos que estão acima das percepções sensoriais, suas inteligência é iluminada e eles proferem palavras justas vindas de um coração puro no meio da Igreja de Deus e da grande congregação dos fiéis (Sal.40-9,10). Para as outras pessoas eles são sal e luz, como o Senhor diz deles: “Vocês são a luz do mundo e o sal da terra” (Mat.5,13-14).


Uma vez que estamos tão imbuídos do veneno das paixões malignas estamos necessitados de maneira correspondente do fogo purificador das lágrimas do arrependimento e do trabalho ascético voluntário. Pois somos purgados das manchas do pecado ou ao abraçarmos tal trabalho voluntariamente ou através das aflições que vem espontaneamente. Se nos engajarmos em trabalhos ascéticos voluntários primeiramente, seremos poupados das aflições não solicitadas, mas se falhamos em limpar 'o interior do copo e do prato' (Mat.23,26) através do trabalho ascético, as aflições irão nos restabelecer à nosso estado original com grande severidade. Assim o Criador ordenou.


Se você não entra no caminho da renúncia com o espírito correto – se, por assim dizer, desde o início você se recusa a aceitar um professor e guia, mas considerando-se um adepto, apoiando-se apenas em seu próprio julgamento – você fará uma zombaria da vida religiosa e em troca será zombado por aquilo que acontecerá com você.


Assim como você não pode saber as causas e as curas das aflições do corpo sem uma grande experiência e habilidade médica, você não pode conhecer aquelas aflições psíquicas sem um grande treinamento e prática espiritual. O diagnóstico das enfermidades corporais é uma atividade complicada e apenas alguns poucos são realmente peritos nela, mas o diagnóstico das enfermidades psíquicas é muito mais complicado. A alma é superior ao corpo e de maneira correspondente suas aflições são maiores e mais difíceis de entender do que aquelas do corpo, que são visíveis a todos.


As virtudes principais e primárias foram co-criadas com o homem como parte de sua natureza. Delas os rios de todas as outras virtudes são abastecidos como se fossem quatro poços e elas irrigam a cidade de Deus, o qual é o coração purificado e refrescado pelas lágrimas. Se você manter essas quatro virtudes principais invencíveis aos espíritos da malícia ou se quando elas caírem você as erguer novamente através da labuta do arrependimento, você irá construir um palácio real no qual o Rei de Todos poderá fazer a sua morada (João 14,23) concedendo generosamente Suas dádivas sublimes sobre aqueles que prepararam o terreno dessa forma.


A vida é curta, a época por vir é longa e pequena é a duração de nossa existência. O homem, este ser notável mas insignificante, para quem o raro presente foi repartido, é fraco. O tempo é escasso, o homem fraco mas o desafio apresentado diante de si, com seu premio, é grande, mesmo se cheio de espinhos e se coloca nossa vida trivial em risco.


Deus não quer que os labores daqueles bem avançados no caminho espiritual aconteçam sem serem testados, quer que eles sejam bem provados. Consequentemente, Ele lança sobre eles o fogo da tentação e afasta por um curto período a graça dada a eles, permitindo que a traquilidade de seus pensamentos seja perturbada por um tempo pelos espíritos da malícia. Dessa maneira Ele vê para que caminho a alma irá se voltar e se ela irá beneficiar seu próprio Criador e Benfeitor ou os sentidos deste mundo e a sedução do prazer. Dependendo de sua propensão, ou Ele irá aumentar Sua graça neles conforme eles avançam em seu amor por Ele, ou os flagelará com tentações e tribulações se eles cederem aos pensamentos e ações mundanas, continuando isso até que eles venham a odiar o redemoinho instável das coisas visíveis e com lágrimas lavarem o amargor de seus prazeres.


Quando a paz de seus pensamentos for perturbada pelos espíritos da malícia, esses caçadores – demônios amantes da carne – assaltarão de imediato seu intelecto, que é fácil de ser montado, com as flechas ardentes do desejo (Efé.6:16). Como resultado, seu movimento ascendente é frustrado e ele sucumbe a impulsos indecorosos e corruptos; a carne licenciosamente começa a se revoltar contra o espírito, através de atrativos e incitação buscando arrastar o intelecto para o fosso do prazer. E se o Senhor dos exércitos não encurtasse esses dias e garantisse a Seus servos a força para suportar, “nenhuma carne seria salva” (Mat. 24,22).


O altamente experiente e astuto demônio da impureza é para alguns uma armadilha, para outros um flagelo bem merecido, para outros um teste ou um desafio para a alma. Ele é uma armadilha para aqueles que são recém adeptos na batalha espiritual, que sustentam o jugo ascético de maneira negligente e indolente; é um flagelo para aqueles que avançaram metade do caminho que leva à virtude mas então relaxaram em seus esforços; e é um teste ou um desafio para aqueles que nas asas do intelecto já adentraram a esfera da contemplação e que agora aspiram pela forma mais elevada de desapego. Cada categoria é portanto divinamente guiada na maneira que lhe cabe melhor.


O demônio da impureza é uma armadilha para aqueles que vivem a vida ascética superficialmente. Ele excita seus membros com os desejos sensuais e sugere maneiras de executar as vontades da carne mesmo que seja sem a relação e o contato com outra carne, algo do qual é mesmo vergonhoso até mesmo pensar ou falar (Efé.5,12), tais pessoas corrompem a carne (Jud. 8) e devoram os frutos do prazer amargo, cegando a si mesmas e merecidamente caem dos reinos superiores. Se desejam a cura, a encontrarão no fervor do arrependimento e no remorso cheio de lágrias que o segue. Isso os fará fugir do mal e purificará sua alma de sua impureza, tornando-a uma herdeira da misericórdia de Deus. Em sua sabedoria Salomão referiu-se a isso de maneira critica quando disse: “A cura coloca um fim a grandes ofensas” (Ecl.10,4)


Esse demônio é um flagelo bem merecido para aqueles que através das práticas das virtudes atingiram o primeiro grau de desapego e estão agora progredindo para o que está além dele e é mais perfeito. Pois quando por preguiça eles afrouxam a tensão de sua prática ascética e desviam-se, mesmo que ligeiramente, na direção da preocupação sem proteção do mundo sensível, ansiando por se envolver em assuntos humanos, então, como resultado da enorme bondade de Deus para com eles, esse demônio age como um flagelo (ou um açoite): ele começa a atacar esses que se desviam dessa forma com pensamentos tingidos por desejos carnais. Incapazes de suportar isso, eles rapidamente revertem para sua fortaleza de intensa prática e atenção ascéticas, realizando com empenho cada vez maior e até mais vigorosamente as tarefas que irão salvá-los. Em Sua generosidade, Deus não deseja que a alma que atingiu esse estágio volte-se completamente para o mundo dos sentidos, pelo contrário, Ele quer que ela progrida continuamente e abrace zelosamente obras cada vez mais perfeitas, de modo que nenhuma praga jamais aproxime-se sua morada (Sal.91,10 LXX).


Através da economia de Deus, esse mesmo demônio é um teste, um espinho e um desafio para aqueles que, tendo atingido o primeiro, aspiram o segundo grau de desapego (de ausência de paixões). Enquanto o demônio os perturba, eles se lembram das fraquezas de sua natureza e não se tornam presunçosos por causa da 'abundância das revelações' (1 Cor.12:7) que eles receberam através da contemplação. Ao invés, vivamente cientes da lei que guerreia contra a lei do intelecto (Rom.7,23), eles repudiam até mesmo a lembrança passageira do pecado, para que ao recordar dele não experimentem outra vez a corrupção que ele provoca e assim deixando o olho do intelecto deslizar das alturas da contemplação.


Apenas aqueles que através do Espírito foram privilegiados de receber a agonia vivificante do Senhor (2Cor.4,10) em seus membros e pensamentos podem manter seu intelecto imperturbado mesmo que por vagas memórias do pecado. Sua carne está morta para o pecado, enquanto que através da retidão que há em Jesus Cristo eles enriqueceram seus espíritos com vida (Rom.8,10). Aqueles que através de sua consciência da sabedoria receberam o intelecto de Cristo também experimentarão a agonia vivificante que vem do conhecimento de Deus.


O espírito do desejo e da raiva é capaz de invadir as almas recém purificadas. Para fazer o que? Para chacolhar os frutos do Espírito Santo que germinam dentro delas. Pois a alegria da liberdade produz uma certa confusão em tais almas, elas tendem a exaltar a si mesmas sobre os outros por causa de sua grande liberdade e a riqueza de seus dons, e também tendem a pensar que atingiram o grande palácio da paz através de sua própria força e compreensão. Assim, a Sabedoria que determina todas as coisas para o bem e busca sempre atrair essas almas para Si mesma por meio de suas dádivas e mantê-las imóveis em sua humildade, se afasta delas ligeiramente e assim permite que o espírito do desejo e da raiva ataque-as. Como resultado, mergulhadas no medo da queda, elas novamente mantém guarda sobre a humildade abençoada e reconhecendo que estão atadas à carne e ao sangue, buscam de acordo com sua natureza verdadeira pela fortaleza interior onde através do poder do Espírito Santo podem se manter sãs e salvas.


A veemência de nossas provações e tentações depende do grau com o qual estamos debilitados pelas paixões e infetados pelo pecado; e a taça amarga do julgamento de Deus varia adequadamente. Se a natureza do pecado dentro de nós é tal que pode ser facilmente tratada e curada – se, por assim dizer, ela consiste de pensamentos que são auto-indulgentes e mundanos – então o Médico de nossas almas em Sua compaixão adiciona apenas uma dose média de absinto à taça da provação e da tentação que Ele administra, uma vez que essas são doenças humanas através das quais somos afligidos. Mas se o pecado está profundamente arraigado e é difícil de curar – uma infecção letal de pretensiosos pensamentos arrogantes – então na agudeza de Sua ira Ele nos dá a taça sem ser diluída, de modo que dissolvida e refinada no fogo das provações sucessivas da humildade que elas induzem, a doença possa ser removida de nossa alma e assim, poderemos lavar os pensamentos salobros com lágrimas, nos apresentando puros na luz da humildade à nosso Médico.


Aqueles engajados na batalha espiritual podem escapar do ciclo de provação e tentação apenas ao reconhecer sua fraqueza e ao considerarem a si mesmos como estranhos à retidão e indignos de qualquer consolo, honra ou repouso. Deus, o doutor de nossas almas, deseja que sejamos sempre humildes e modestos, desapegados de nossos semelhantes e imitadores de Seus sofrimentos. Pois Ele foi 'manso e humilde no coração' (Mat. 11,29), e que que sigamos o caminho de Seus mandamentos com similar mansidão e humildade de coração.