terça-feira, 30 de novembro de 2010

Bernard de Clairvaux (São Bernardo) - Sobre a Conversão


Talvez este texto do Salmo choque algum de vocês: “Aquele que ama a perversidade odeia sua própria alma” (Sal.11:5). Mas digo que ele odeia também seu corpo. Certamente odeia o que ele está guardando para o inferno dia após dia, o que por sua dureza e impenitência do coração ele está entesourando para o dia da ira? Pois esse ódio do corpo e da alma não é muito encontrado na forma de um sentimento, e sim, é revelado por seus efeitos. Desse modo o louco odeia seu corpo quando coloca as mãos em si mesmo uma vez que seus poderes de pensamento racional estão adormecidos. Mas há alguma loucura pior do que a impenitência do coração e um desejo obstinado pelo pecado? Se um homem coloca mãos perversas em si mesmo, não é a sua carne mas é a sua mente que ele rasga e danifica. Se você já viu um homem rasgando suas mãos e depois esfregando-as até sangrarem, você tem nele uma imagem clara da alma de um pecador. O prazer transforma-se em dor e a agonia segue o comichão. Enquanto o homem estava se coçando ele ignorou as consequências, embora soubesse o que iria acontecer.

Da mesma forma nós laceramos a nós mesmos e provocamos úlceras em nossas infelizes almas com nossas próprias mãos – a única diferença é que numa criatura espiritual isso é mais sério porque sua natureza é mais fina e mais difícil de consertar. Não fizemos isso num espírito de inimizade, mas num estupor de insensibilidade interna. A mente ausente não nota o dano interno, pois ela não está olhando para dentro, mas talvez está concentrada no estomago, ou abaixo do estomago. As mentes de alguns homens estão em seus pratos, as de outros em seus bolsos. “Onde está seu tesouro,” ele diz, “ali está seu coração” (Mat.6,21). É surpreendente se uma alma não sente sua ferida quando ela não está notando o que está acontecendo a ela e está em algum lugar distante? Chegará a hora que ela retornará a si mesma e perceberá o quão cruelmente ela tem estripado a si mesma em sua busca perversa. Pois ela não podia sentir isso enquanto estava como uma aranha suja tecendo uma teia de seu próprio corpo com uma avidez insaciável para capturar seu vil espólio de moscas.

Mas esse retorno sem dúvida será após a morte, quando todos os portões do corpo - pelos quais a alma foi usada para vagar por aí e ocupar-se em buscas inúteis e sair para procurar as coisas passageiras deste mundo estarão fechados, e ela será forçada a permanecer dentro de si mesma, pois não terá meios de escapar de si mesma. Verdadeiramente, esse será o retorno mais terrível e uma miséria eterna, quando ela não poderá mais se arrepender ou fazer penitências. Pois onde não há corpo, não há possibilidade de ação. Onde não há ação, nenhuma satisfação pode ser feita. Desse modo, se arrepender é afligir-se, fazer penitências é o remédio para a tristeza. Aquele que não tem mãos não pode levantar seu coração em suas mãos para os céus. Aquele que não veio a si antes da morte da carne deve permanecer preso em si mesmo pela eternidade.

Mas ele mesmo quem? O que quer que ele tenha feito de si mesmo nesta vida, tal ele será encontrado quando abandonar esta vida, ou talvez até pior, pois ele jamais estará melhor. Pois ele tem a si mesmo. Ora ele entrega seu corpo, ora recebe-o de volta outra vez, no entanto, não para a penitência mas para a punição, onde o estado do pecado e da carne serão vistos serem tão parecidos que embora nosso corpo seja punido, seu pecado nunca poderá ser expiado e a tormenta do corpo jamais poderá ser terminada nem o corpo ser morto pela tortura. Na verdade, de fato, a represália se enfurece para sempre, pois ela não poderá jamais fazer desaparecer o pecado. Nem poderá a substância do corpo ser desgastada, pois dessa forma a aflição da carne chegaria ao fim. Irmãos, aquele que teme isso, que tenha cuidado, pois quem não tomar cuidado cairá nisso.

Atualmente devemos sentir e estrangular o verme da consciência, ao invés de alimentá-lo e assim nutri-lo para a eternidade.

Para voltar para aquela voz da qual estivemos falando, seria bom que voltássemos a nossos sentidos enquanto “está aberto o caminho pelo qual ele nos mostra sua salvação” (Sal.50,23), ele que com tal amor zeloso chama de volta aqueles que se perderam.

Enquanto isso não vamos ressentir o corroer desse verme dentro de nós. Nem deixar uma ternura perigosa da mente ou um abrandamento pernicioso nos persuadir que queremos esconder nosso presente problema. É muito melhor que ele corroa agora, quando ele pode ser destruído por corroer a si mesmo até a morte. Por ora, deixe-o corroer o material pútrido, de modo que consuma-o através de seu corroer e seja ele mesmo consumido e dessa maneira ele não começará a ser nutrido para a eternidade. “Seu verme”, é dito, “não morre e seu fogo não é extinguido” (Isa.66,24). Quem suportará o corroer?

Por ora uma consolação múltipla alivia a tortura da consciência acusadora. Deus é gentil e não permite que sejamos tentados além do que podemos suportar e nem que o verme nos cause dano demais. Especialmente no início de nossa conversão, ele unge nossas úlceras com o óleo da misericórdia, de modo que não fiquemos cientes demais da seriedade de nossa enfermidade ou da dificuldade de curá-la. De fato, o conforto de sua cura parece sorrir para o penitente. Mas após um período, isso se esvai, quando seus sentidos foram treinados e a batalha é colocada em suas próprias mãos para que ele vença e aprenda que a Sabedoria é mais forte do que todas as coisas. Entretanto, aquele que ouviu a voz do Senhor: “Voltem a si, malfeitores” (Isa 46,8), e que descobriu as perversidades no fundo de seu coração, está ávido para desenraizá-las uma a uma e está curioso para descobrir como chegaram ali. A entrada, ou as entradas, não são difíceis de encontrar se você olhar. Mas não é pouco pesar que vem dessa examinação, pois ele descobre que a morte entrou através de suas próprias janelas (Jer.9,21). Torna-se claro que os olhos acostumados a perambular, os ouvidos cheios de comichão, os prazeres do olfato, do paladar e do tato deixaram entrar muitas delas. Pois os vícios espirituais dos quais estamos falando ainda são difíceis de ver para um homem carnal . É por isso que ele percebe menos claramente ou não percebe de modo algum aquelas que são as mais sérias e sua consciência não é tão perturbada pela memória do orgulho ou da inveja bem como pela recordação de ações vergonhosas ou pervertidas.

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E eis a voz do céu dizendo: “Fique quieto, você pecou.” E isso é o que ela diz. Uma fossa transbordando contamina a casa toda com uma imundice intolerável. É inútil você esvaziá-la quando a sujeira ainda está inundando, se arrepender enquanto você não cessa de pecar. Pois quem aprova o jejum daqueles que jejuam por conflitar, disputar e punir com o punho da perversidade, que acarinham a si mesmos e fazem o que bem entendem? “Esse não é o jejum que escolhi,” diz o Senhor (Isa.58,6). Feche as janelas, tranque as portas, bloqueie todas as entradas cuidadosamente e quando por fim você não estiver lutando com a entrada de sujeira, você poderá limpar o que já está lá. Se um homem pensa que o que é pedido que ele faça é fácil, é como se ele não tivesse sabido da batalha espiritual. Pois quem pode dizer que eu não sei governar meus próprios membros? Portanto, o jejum põe um fim na glutonia e proíbe a embriaguez, os ouvidos são tapados para impedí-los de ouvir sobre o sangue, os olhos afastados da vaidade, a mão é direcionada não para a ganância mas para a caridade e é colocada para trabalhar para parar de roubar, como está escrito: “Aquele que era um ladrão não é mais, em vez disso ele trabalha com suas mãos para fazer o bem, de modo que ele tenha algo para dar aos necessitados.” (Efé.4,28)

Ao ouvir este discuso o miserável empalidece e é arrebatado pela confusão. Pois seu espirito está perturbado dentro dele. Mas os membros vão sem demora a sua infeliz senhora reclamar amargamente de seu amo e lamentar de seus duros comandos. O ávido sentido do paladar reclama da crueldade do limite imposto a ele e da proibição do prazer da glutonia. O olho reclama que lhe foi falado para chorar em vez de vagar por aí. Enquanto prosseguem essas reclamações, a vontade, agitada e ferozmente irritada, diz: “você está me contando um sonho ou uma história?” Agora a língua, que descobriu seu motivo para reclamar, diz: “É tudo como você escutou mesmo. Pois eu também fui ordenada a não contar histórias ou mentiras e daqui para frente não falar nada além do que seja sério e necessário.”

Enquanto ele promulga lei e faz decretos dessa maneira para seus próprios membros, eles repentinamente interrompem a voz que está lhes dando ordens e gritam com um impulso único: “De onde vem esta nova religião? É fácil para você dar ordens como bem entende. Mas aparecerá alguém que se oporá a elas, que irá criar novas leis para contradizê-las.” “Quem é ela?” ele pergunta. Eles respondem: “É alguém que está deitado em casa paralisado e profundamente atormentado.”


Então a pequena velha mulher pula furiosamente, esquecendo toda sua fadiga. Com os cabelos em pé, suas roupas amassadas, seus seios nus, coçando suas feridas, rangendo os dentes, com a boca seca, infetando o ar com seu hálito podre, ela pergunta por que a razão (se resta ainda alguma razão) não está envergonhada de atacar e invadir a miserável vontade. “É essa sua fidelidade conjugal?” ela questiona. “É dessa maneira que você sente compaixão por mim em meu sofrimento? Até agora você me poupou e não acrescentou dor às minhas feridas. Talvez pareceu a você que algo deve ser subtraído de meu grande dote? Mas quando você tiver levado isso embora, o que sobrará? Você meramente aumentou a miséria desta pobre criatura e sabe o quanto você já respeitou todos os meus desejos.

Mas agora, que essa maldade tripla dessa doença terrível sob a qual eu trabalho, tivesse caído sobre você e não em mim. Sou voluptuosa. Sou curiosa. Sou ambiciosa. Não há nenhuma parte de mim que esteja livre dessa úlcera tripla, das solas dos meus pés ao topo de minha cabeça. Minha garganta e as partes infames de meu corpo estão abandonadas ao prazer, temos de nomeá-las novamente uma a uma. Os pés perambulantes e os olhos indisciplinados são escravos da curiosidade. Os ouvidos e a língua servem à vaidade, enquanto que o óleo do pecador é despejado para deixar minha cabeça oleosa. Com minha língua eu mesmo complemento o que quer que os outros esqueceram de falar em meu louvor. Fico altamente contente tanto de receber louvores dos outros ou pelos outros, pois sempre gosto que falem de mim.

Para essa doença sua maior habilidade está também no hábito de aplicar muitos vestidos. Assim minhas próprias mãos, indo a toda parte não tem nenhuma tarefa particular, elas mostram estarem totalmente escravizadas ora pela vaidade, ora pela curiosidade, ora pelo prazer. Mesmo assim, nada disso jamais conseguiu satisfazer-me, pois os olhos não estão satisfeitos pelo que vêem, nem o ouvido pelo que ouvem. Mas algumas vezes é como se todo o olho ou os membros fossem transformados numa garganta para se comer. Então, de fato eu posso ter essa pequena consolação que, a despeito de minhas súplicas, você está tentando tirar de mim.” Assim ela falou e afastando-se com indignação e fúria, disse: “Eu esperarei; esperarei por um longo tempo.”


Agora a razão entende seu enfado. Agora ela percebe um pouco da dificuldade da empreitada que ela assumiu e a facilidade da qual ela pensava aparece como uma ilusão. Ela vê que a memória está cheia de imundice. Ela vê mais e mais sujeira sendo livremente despejada em si. Vê as janelas abertas para a morte e não pode fechá-las, porque a vontade ainda é fraca, embora ela ainda esteja no comando, e de suas úlceras uma massa de pus sangrenta está vazando por toda parte. Pior de tudo, a alma vê-se contaminada não por outrem, mas por seu próprio corpo, que não é nada além dela mesma. Pois a alma é constituída de tal modo, que assim como ela é a memória que é manchada, é também a vontade que destrói. Pois a alma em si não é nada além da razão, da memória e da vontade. Porém, no momento a razão encontra-se cega, pois ela não via isso até agora, e fraca, pois não pode reparar o que ela reconhece; a memória é encontrada estando podre e fétida; e a débil vontade coberta por feridas que coçam. E, para não omitir nada que pertence ao homem, seu próprio corpo se rebela e cada membro é uma janela pela qual a morte adentra a alma e incessantemente faz a confusão piorar.

Quando estiver nesse estado, deixe a alma ouvir a voz divina, com maravilhamento e surpresa deixa ouví-la dizer: “Abençoados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos Céus” (Mat.5,3). Quem é mais pobre em espírito do que aquele que a totalidade de seu próprio espírito não encontra descanso, nenhum lugar para recostar a cabeça? (Mat.8,20) Aqui também é conselho sagrado que quem desagrada a si mesmo agrada a Deus, e aquele que odeia sua própria casa, uma casa cheia de sujeira e infelicidade, é convidado na casa da Glória, uma casa não feita com as mãos, que será eterna nos Céus. Não é surpresa se ele trema diante da grandeza de sua condescendência, que ache difícil de acreditar no que ouviu. Não é surpresa se, arrebatado pela perplexidade, ele clamar: “Então a miséria faz um homem feliz?”

Se você está nesse estado, tenha fé. Não é a miséria mas a piedade que torna um homem feliz, de modo que a humilhação vira humildade e carência vira força. “Deves reservar para tua herança uma chuva generosa, ó Deus, estava falhando, mas Tu a tornaste perfeita.” (Sal.68,9) Essa fraqueza é um benefício que busca a ajuda de um médico e aquele que enfraquece o faz para sua salvação quando Deus o aperfeiçoa.