domingo, 28 de novembro de 2010

Farid-Ud-Din Attar - O cão da alma


História sobre Schabli



Schabli desapareceu de Bagdá e ninguém conhecia seu paradeiro. Procuraram-no por muitos lugares, até que alguém o encontrou numa casa de eunucos. Com os olhos úmidos e os lábios secos, deixava-se fica entre aquela gente grosseira. “Ó tu que estudas os segredos divinos!” disseram-lhe, “é este teu lugar?” Ele respondeu: “Aos olhos do mundo, estes que tu vês não são homens nem mulheres. Eu sou como eles, pois no caminho da fé não há homem ou mulher. Perdi-me em minha inércia, e também a virilidade é para mim motivo de vergonha. Aquele cuja alma tornou-se inteligente faz de sua ferida uma toalha para a mesa do Caminho. Aquele que, como os homens da via espiritual, preferiu a desonra, redimiu e honrou os desgraçados que fraquejaram. Se queres expor-te por menos que seja aos olhos do mundo, não és melhor que um ídolo. Se te importas com louvores ou censuras, não passas de um fabricante de ídolos. Se és um homem de Deus, não sejas como o pai de Abraão. Não há, nem nas classes altas nem nas classes baixas, lugar mais elevado do que o serviço a Deus. Aplica-te a esse dever e não tenhas outra pretensão, seja um homem de Deus e não busques glória em outro lugar. Quando escondes cem ídolos sob teu manto, para que te mostrar sufi ante aos homens? Tu és eunuco, não te vistas como os homens da via espiritual enquanto não abandonares para sempre toda a leviandade.

A disputa de dois Sufis



Dois homens, vestidos com a hirka dos sufis, discutiam e insultavam-se perante o tribunal. O juiz afastou-os, dizendo: “Não é conveniente que dois sufis discutam desta maneira. Desde que levam no peito o manto da resignação, por que então se colocam em litígio? Se sois homens de combate e vingança, atirai longe esse manto. Se, ao contrario, sois dignos dele, renuncia a esta louca discussão. Eu, que sou juiz e não um homem do caminho espiritual, sinto vergonha por causa do hábito que vestis. Seria melhor concordar em divergir do que discutir usando esse manto. Da forma com agis, usar o véu das mulheres seria menos desonesto que vossa atual roupagem.”

Uma vez que, no amor, não és homem ou mulher, como poderias desvendar seus segredos? Se estás submetido a provas na via do amor, garante-te com a armadura conveniente. No entanto, se em teu caminho o amor te força à rendição, então faze-o com alegria, lança fora teu escudo; se resistires, morrerás. Se tens a pretensão de dirigir-te a este lugar, deves entregar tua cabeça ao vento e abandonar tua vida. De agora em diante não levantes a cabeça por pretensão, para que não sejas obrigado a submeter-te ao amente por infâmia.




O veho coveiro


Um coveiro praticou seu ofício até a idade avançada. Um dia alguém lhe perguntou: “Tu que passaste a vida cavando buracos na terra, o que viste de mais notável durante esse tempo?” O coveiro respondeu: “O que mais me admira de tudo o que vi é que meu cão da alma viu-me cavar túmulos durante setenta anos, mas ele próprio não morreu uma única vez nem obedeceu um só momento à lei de Deus, e isto é um prodígio!”



História sobre Abbaçah


Certa noite Abbaçah disse: “Ó vós que estais aqui presentes! Suponhamos que os infiéis que enchem o mundo, até mesmo os loquazes turcomanos, aceitem sinceramente a fé – coisa que poderia acontecer. Porém, cento e vinte mil profetas foram enviados para a alma infiel converter-se de uma vez ou perecer. E isto, embora justo, não pôde ser feito. De onde vem a diferença entre esse esforço e o resultado?”

Todos nós estamos sob o domínio dessa alma infiel e desobediente, e nós mesmos a alimentamos, será fácil então destruí-la? Amparada como está pelos dois lados, seria admirável que ela perecesse. O espírito, como um cavaleiro, percorre com constância o reino espiritual, porém, dia e noite, esta alma vil é sua comensal. Por mais que o cavaleiro faça galopar seu cavalo, esta alma, como um cão, segue-o sempre, sem descanso. Tudo o que o coração recebe do objeto de seu amor, outro tanto é tomado pela alma, do coração. No entanto, aquele que prende vigorosamente este cão colherá em sua rede o leão dos dois mundos. Aquele que subjuga este cão ultrapassa seus rivais até que eles não alcancem sequer a poeira de seu sapato, e se puder aprisioná-lo, o pó de seu sapato terá mais valor que o sangue dos outros.

Pergunta de um rei a um dervixe



Um homem comprometido na vida do espírito e coberto de farrapos ia por seu caminho quando encontrou um rei, que ao vê-lo lhe disse: “Ó tu que estás coberto de farrapos! Qual de nós é o melhor, tu ou eu?” O dervixe respondeu: “Ó ignorante! Golpeia teu peito e guarda silêncio, tuas palavras são vazias como tua cabeça. Embora não me caiba fazer meu próprio elogio, pois aquele que louva a si mesmo não sabe o que diz, devo dizer que não há dúvida de que um homem como eu é mil vezes melhor que um homem como tu. De fato, não conheces o gosto da fé e tua alma luxuriosa reduz-te ao estado de um asno. Esta alma te domina, senhor, estás curvado por seu peso, pois ela fez de ti sua montaria. Dia e noite tua cabeça está envolvida por um cabresto e só ages sob suas ordens. Tudo o que ela te ordena, a ti que não és próprio para nada, ação ou não-ação, deves fazê-lo sem réplica; mas eu, que conheço o segredo do coração, fiz do cão da alma meu asno. Quando esta alma converteu-se em meu asno, eu a montei. Teu cão da alma te governa, mas se fizeres dele tua montaria, serás então como eu e cem vezes melhor que teus semelhantes.”

Ó tu que te contentas com o cão da alma! Tu a quem o fogo da luxúria devora! Sabe que este fogo devora a água de tua honra, apaga a luz de teu coração e tira a força de teu corpo. A escuridão dos olhos e a surdez dos ouvidos, a velhice, o enfraquecimento de teu espírito, o apagar de tua inteligência, tudo isso constitui um exército e seus soldados; e estes são, na realidade, servidores do príncipe da morte. Dia e noite, sem descanso, ele envia seu exército, envia-o pela frente e por trás, e quando o exército chega por todos os lados , tombas com tua alma longe do caminho. Tu te divertes na companhia dos cães e te entregas ao prazer, porém foste convertido em escravo; o cão da alma é teu senhor e estás submetido ao seu poder. Quando o rei da morte e seu cortejo se aproximarem, este cão da alma se separará de ti, e tu dele, mas se decidires separá-los agora um do outro, estarás ainda submetido à está separação? Não te entristeças por não estarem juntos neste mundo, pois certamente ele estará contigo no inferno.

As duas raposas



Duas raposas encontraram-se e passaram a compartir a mesma comida. Juntas experimentavam tal deleite que um forte apego surgiu entre elas. Um rei que caçava na planície com suas panteras e falcões separou essas duas raposas. A fêmea perguntou então ao macho: “Ó caçador de tocas! Quando nos encontraremos de novo?” Ele respondeu enquanto abandonavam seu esconderijo: “Minha cara, se nos encontrarmos novamente será no peleteiro da cidade, pendurados numa estola.”