quarta-feira, 11 de agosto de 2010

G. I. Gurdjieff - Paris, 8 de outubro de 1943


Gurdjieff: Rapaz, eu notei você pouco tempo atrás e então você desapareceu. Estou muito interessado em saber como você passou as férias e o que você trouxe de volta para minha decepção ou para minha satisfação. Estou muito interessado em escutar seu depoimento. Todos que voltaram de férias deram seus depoimentos; conheço-os mais ou menos agora. Para que eu conheça você melhor no futuro, para suas relações futuras, eu gostaria de saber como você passou o seu tempo e ao mesmo tempo talvez as minhas respostas para você serão úteis para outras pessoas. Portanto, se você não quer fazer essas outras pessoas felizes, você pode se recusar a falar e nós dois juntos podemos falar a sós. Mas se você decidir que seu depoimento pode ser útil, faça-o.


Lebeau: Durante as férias meu trabalho consistiu em desempenhar todos os tipos de papéis. Tenho a impressão que estou um pouco mais livre no que diz respeito às outras pessoas comigo e dos resultados de minhas ações. Nos quatro dias desde que voltei a Paris, sinto em mim um tipo vago de medo, de reação de defesa. Parece-me que tudo que está a minha volta é feito para me comer, que eu estou mais dependente das coisas externas, do sucesso e da falha, como se uma nova força quisesse destruir algo em mim. E eu diria que isso quase me aterroriza, pois isso me parece ser algo essencial e eu gostaria de saber o que eu poderia fazer para lutar contra isso.


Gurdjieff: Você gostaria de ter primeiro uma explicação sobre isso e seguir depois ou você quer continuar agora?


Lebeau: Gostaria de dizer algo mais. Vários meses atrás você aconselhou-me a ser um bom egoísta. Agora em relação aos outros, sinto muitas atitudes em mim que me parecem ser o resultado do que eu fiz nas férias. Há o antigo: Dar, ter piedade, que num sentido está sempre ali. Há algo novo que faz eu considerar os outros como meios ou instrumentos e que eu posso dizer para mim mesmo que todos morram, que diferença isso faz para mim. Há uma terceira atitude que consiste em fugir deles. Ás vezes é uma, às vezes é outra, às vezes as três juntas. Eu não consigo conciliá-las e isso me dá um sentimento bizarro. E o que eu digo sobre os outros eu podeira dizer um pouco da mesma maneira sobre mim. Considerar a mim mesmo como um instrumento. Com as mesmas ações com relação aos outros. Isso produz um certo sentimento de desconforto que não consigo harmonizar. (uma longa pausa) Isso é tudo que eu tinha a dizer.


Gurdjieff: Há três preguntas e você entende que deveria ter três explicações minhas. Primeiro, lá onde você esteve durante um período especial você criou para si mesmo hábitos de vida muito diferentes dos usais, condições muito diferentes, outro tempo para suas funções: uma qualidade absolutamente diferente. E você volta aqui. Aqui é outra situação, outras condições que você experimentou, como você relatou. E agora se você continuar a ter medo, então acontecerá com você o mesmo que acontece com um monge num monastério. Num monastério ele trabalha muito bem sozinho. Mas na vida ele vai numa direção bem distinta assim que estabelece relações com as outras pessoas. O que você ganhou enquanto estava fora você deve usar – deve fixar isso na sua vida. Inicie uma tarefa muito difícil. Não se identifique. Fixe tudo o que você adquiriu. Se você não faz esforços para fixar isso em você, acontecerá com você exatamente o que acontece com um monge. Tudo será perdido.


Lebeau: Isso é um pouco como senti: a necessidade de fixar tudo isso.


Gurdjieff: Será um período muito duro de atenção. Não se identificar e continuar a atuar um novo papel aqui. Externamente agir igual você costumava a agir e internamente manter o seu estado e fixá-lo firmemente nas condições de sua vida presente. Dessa forma você terá o lucro de tudo o que você fez durante as férias. Se não, tudo irá se tornar uma miscelânea. Aqui estão minhas instruções: Não tenha piedade de si mesmo, não poupe a si mesmo e impiedosamente cristalize em você, mesmo nas novas condições de vida, as impressões e associações do verão.


Lebeau: O que torna o trabalho mais difícil é que durante as férias eu tinha a cada vez um papel exato para atuar, aqui devo achar algo diferente.


Gurdjieff: É por isso que é difícil e eu lhe disse para fazer um esforço. Você deve atuar seu antigo papel e fazer com que o seu estado interior seja a nova condição que você adquiriu. Em seguida você colocou uma segunda questão sobre o egoísmo. A esse respeito eu disse no geral que aquele que quer ser um altruísta real no futuro deveria ser no presente um egoísta absoluto. Mas nesse verão você achou que isso deveria incluir os seus próximos – seu pai e sua mãe. Mas com eles você não pode ser um egoísta, você não pode agir dessa maneira. Com eles, a natureza não permite isso. Com os outros você pode. É daí que vem o mal-entendo; eu não especifiquei o objeto do exercício e você considerou seu pai e sua mãe. Mas isso depende do objeto. Quando eu falei eu não falei do pai e da mãe, falei em geral. Você deveria externamente atuar um papel e internamente não se identificar. E você fez isso com sua mãe. Eu disse que você deveria ser um puro egoísta de modo a ter a possibilidade de ser um futuro altruísta verdadeiro. Mas você não poderia ser um egoísta verdadeiro com seu pai e sua mãe nesse verão. Essa é a razão do porquê foi difícil. Você tomou-os como objeto do exercício, mas você não podia ter feio isso, pois isso é contra a natureza.


Lebeau: Isso está correto. Mas mesmo com relação aos outros, a pena surgia. Quando eu estava atuando meu papel, havia pena. Não especialmente por cada um mas pela totalidade de tudo junto que estava ali daquela maneira.


Gurdjieff: Então era sempre quando você estava indo ver seu pai e sua mãe e isso continuava automaticamente pelo dado impulso. Você não ficava em paz após tê-los visto, mas você não tinha que ter pena. Você deveria ser egoísta. Os outros não existem para você; no futuro você vai estar apoiado sobre suas próprias pernas. Mas no presente você não tenha pena; essa é sua tarefa. É diferente quando você vai encontrar seu pai e sua mãe, a pena vem automaticamente e até mesmo o remorso de consciência. Você confundiu as coisas. Eu não lhe alertei quando expliquei o egoísmo e não disse nada em especial sobre isso no que se referia a seus pais. E agora a terceira questão: Eu lhe darei uma tarefa e se você quiser, até mesmo todo seu futuro dependerá da maneira como você passará seu tempo nos próximos meses. Disso depende todo o seu futuro. Nesse verão você adquiriu um bom material; fixe isso em você para a vida. É um trabalho muito duro. Lembre-se de si. O tempo todo. Fixe isso com o “eu sou”. Constantemente na vida tente, continue, de forma completamente egoísta. Sem pena. Não ajude ninguém e tenha uma consciência limpa. Quando você se fortalecer você verá cem vezes mais. Agora você não é forte, você não pode fazer nada. Esqueça tudo em prol do seu futuro. E o seu futuro depende de você continuar o exercício do egoísmo. Portanto continue isso. Como você pode fazer para não esquecer? “eu sou, eu posso ser, eu posso ser isso”. Para não ser um egoísta no futuro. Tente. Lembre-se de si o mais frequentemente possível. “Eu sou”. Tenha a sensação de você mesmo tanto quanto possível e quanto mais você puder lembrar de si internamente, melhor será o seu futuro.


Lebeau: Às vezes eu quase não queria deixar meu egoísmo livre, pois ficava surpreso de senti-lo dentro de mim como um animal faminto e ficava com medo dele.


Gurdjieff: Você foi viajar para nutrir-se e descansar. Você preparou material de modo que você pudesse trabalhar. Então mesmo se tivesse agido como um vampiro teria sido perdoável. Você tinha que ter nutrimento. A propósito, constatei que a maioria daqueles que retornaram das férias estão fora de equilíbrio. Isso é normal assim como era normal no momento antes de partirem. Todos esqueceram que o homem não consiste de uma pessoa mas de duas ou três pessoas. Eles se esqueceram disso enquanto estiveram fora. Eles agiram como se fossem uma pessoa. Mas não são uma pessoa. Eles desenvolveram uma parte e esqueceram as outras e hoje sentem uma desarmonia em si mesmos. Um, por exemplo, desenvolveu seu corpo muito bem e negligenciou sua individualidade. E todos sentem uma desarmonia. Eles não são apenas uma pessoa mas três pessoas diferentes. Todas as três devem ser desenvolvidas. Para cada uma das três, tempo e medidas devem ser tomados. Se, por exemplo, alguém desenvolveu sua mente bem e não desenvolveu seu corpo, ele é uma nulidade ainda mais do que antes. Se você quiser formular isso, poderia ser assim: Ele tem três pessoas em si, uma tem oito anos de idade, a outra quarenta, a outra cento e cinco anos. Represente isso para você. Três pessoas assim em uma sala. Elas não podem ter nada em comum umas com as outras nenhum acordo ou nenhum trabalho em comum. A pessoa que tem sessenta não pode agir como uma criança de oito e a criança de oito não pode entender o que a pessoa de sessenta pode.

Não se esqueça que o homem é feito de três pessoas. Para cada uma das três deve haver um exercício diferente. Todas as três devem trabalhar, e não apenas uma, apenas de um lado. Isso seria assimétrico. As três devem avançar juntas. Aquele que durante as férias desenvolveu seu centro do sentimento e se isso não corresponde bem com seu corpo, não será possível fazer progresso. Ele terá de descristalizar e destruir o trabalho que ele fez enquanto esteve fora para poder tornar-se apto a desenvolver a segunda parte. As férias foram muito boas para uma coisa . Elas lhe deram o gosto de compreender o que você deve compreender. Outro ano está começando para o trabalho. Uso os seus erros e suas observações para trabalhar agora seriamente e para ter bons resultados.

Mas você pode usar o que ganhou durante as férias se você reparar (compensar) o que você não fez: coloque de lado o que você desenvolveu, coloque sua atenção e trabalhe no lado que não foi desenvolvido. Quando as duas estiverem harmonizadas, elas serão unidas. Aquele que desenvolve-se apenas com sua mente é nada, se for apenas com o corpo, ele também é nada. Ambos são necessários. Agora você já possui o material que lhe dará uma boa chance em ter êxito em uma tarefa mais útil e muito mais lucrativa.

Comece novamente com um novo tipo de atenção e outra compreensão. Seu trabalho deve consistir de duas coisas: familiarize-se melhor com sua nulidade e lembre-se de si frequentemente, o quão frequentemente quanto possível, com a sensação de lembrar de si mesmo: “eu sou”, e de experimentar você mesmo. E cada vez que isso reverbera em sua presença geral você se lembra que você é. E todas as impressões, todas as associações das suas férias, faça-as reverberar na sua presença geral e lembre-se que você é. E quando você se lembrar disso, diga “eu sou” e sinta em todo o seu ser que você é. Senhor advogado, você entendeu o que eu disse? Como um exercício, você pode repetir o que eu disse ou pelo menos a última parte?


Jaques: Eu estava muito ocupado escrevendo para poder conseguir repetir isso dessa forma.


Gurdjieff: Bem, vamos fazer um acordo. Será o seu irmão que irá falar. Irmão, você está aí? Você repete?


[Alfred tenta]


Você não pode repetir nada. Isso prova que o que entra num ouvido sai pelo outro. Agora você está sentado numa galocha. Realmente há apenas uma pessoa aqui que pode nos ajudar. É nosso escritor profissional, meu colega.


[Luc fala lendo seu texto]


Escreva, Sr. Advogado. O que ele diz me interessa muito. É muito leve. O que eu disse era pesado. Obriado, pequeno. Você terminou?Por favor continue.


Luc: Foi o melhor que pude entender.


Gurdjieff: Você não quer tornar isso ainda mais compreensível? Eu disse outra coisa sobre lembrar-se de si mesmo. Senhorita Compreensão (Miss Understanding – trocadilho significando mal-entendido), talvez você tenha algo a dizer que tornará mais pesado o que ele disse?


Simone: Você disse que devemos usar o material que acumulamos durante as férias e que tudo que surgir em nós, que for uma ocasião para a lembrança de si, deveríamos usar para uma lembrança de si mais intensa, em toda a nossa presença geral, para cristalizar os resultados de nossas férias.


Gurdjief: Por que você usa minhas palavras? Cristalizar é uma palavra minha. Encontre outra palavra.


Madame de Salzmann: Cobrir, revestir, condensar, fixar.


Gurdjieff: Sim, revestir. Por que você não disse isso? Prossiga, prossiga, isso foi apenas uma observação.


[Simone fica em silêncio]


Bem, ela não consegue continuar, Sr. Advogado, eu lhe aconselho fazer uma expressão amável e requerer que a doutora repita o que eu disse.


[Jacques pede para a Dra. Abadi]


Dra.: Você disse que devemos lembrar de si com toda a nossa presença e que devemos tirar vantagem de todos os nossos erros e usar todos os nossos erros e tudo que notamos para torná-los fatores para a lembrança de si. Eu não anotei nada mais.


Luc: Pensei ter entendido que você nos falou para tirarmos vantagem de todas as vezes que estamos mais exaltados, mesmo tomados pela raiva e por emoções negativas, para nos beneficiarmos dessa corrente de força que corre através de nós, para usarmos isso. Tirar proveito de tudo o que aumenta a nossa temperatura.


Gurdjieff: Isso também. Eu também disse isso. Alguém tem mais algo a dizer?


Kahn: Você falou muitas vezes de sete aspectos, de diferentes aspectos de uma questão. Por um longo tempo eu não entendi. Depois entendi melhor, percebi que você estava vendo muitos aspectos em mim que estavam misturados para mim mas que você estava distinguindo, e eu gostaria de perguntar-lhe se nós também somos capazes de distinguir diferentes aspectos.


Gurdjieff: Por favor não diga “nós”. Diga “eu” quando você fala de si mesmo e não “nós”. Se você não conhece seus próprios aspectos, como você pode notar os aspectos de outras pessoas? Pergunte algo prático. A outra é apenas curiosidade.


Kahn: Não, não é de curiosidade.


Gurdjieff: Então formule diferente. Há três aspectos que você está apto a ver em diferentes amigos seus – onde encontra-se o seu centro de gravidade, sua individualidade. Dos seus três amigos, um tem seu centro de gravidade em sua mente, o outro é como uma vaca com o centro de gravidade no corpo dele, o terceiro é como uma mulher histérica, ele manipula por tudo. Existem três aspectos de individualidade. Estude isso, é um bom terreno. [Para Aboulker] Do que você está rindo?


Aboulker: Da mulher histérica.


Gurdjieff: Não há uma ilustração melhor para o centro emocional do que a mulher histérica. Ela sente tudo, mesmo o que não existe.


Kahn: Você me fez sentir que tenho muitos aspectos sem que eu esteja apto a conhecer ou mesmo distingui-los dos outros.


Gurdjieff: Através do seu trabalho, você deveria ter êxito em distingui-los. Separe-os. Você tem sete aspectos de densidade. Às vezes eu estou muito pesado, às vezes muito leve. Aprenda a distingui-los. Quando você ver alguém, verá que especto essa pessoa tem. Num outro momento poderemos falar sobre os aspectos fundamentais. Primeiro reconheça os outros, é inútil falar sobre o resto antes. A teoria deveria ir junto com a prática.


Lacaze: Sr. Gurdjieff …


Gurdjieff: Pai! Diga-me o que acontece com sua metade melhor. Não a vejo já faz tempo. Será que ela está preparando um novo resultadinho para você? (Sr. Gurdjieff às vezes usava as expressões 'metade melhor' e 'resultado' para se referir à esposa e aos filhos)


Lacaze: Não, não Sr. Gurdjieff. Há algo em mim que se opõe ao trabalho e ajuda minha inércia. No geral eu reconheço o fato que apenas a vida não pode me dar nada, e ainda assim a algo em mim que espera pela vida, não apenas algo exterior mas algo interior, que diz que seria preferível ter uma mudança de condições externas que me daria tudo que eu amo em geral. E mesmo quando eu estou certo intelectualmente que apenas o trabalho é importante para mim e que eu deveria colocar tudo no trabalho, sinto algo em mim que está convencido do contrário e que tenta ir nessa direção.


Gurdjieff: Que direção?


Lacaze: Longe do trabalho.


Gurdjieff: Você não conhece essa direção?


Lacaze: É a direção oposta ao trabalho.


Gurdjieff: Vejo uma pequena coisa. Se você ganhar cinco milhões na loteria nacional, tudo isso desaparecerá. É muito ruim que isso não dependa de mim. Agora pergunte exatamente o que você quer saber de mim.


Lacaze: Quero saber o que posso fazer a esse respeito. Não há algo que deveria estar satisfeito? Algo justo? Ou isso seria apenas uma justificativa para a inércia?


Gurdjieff: O que falta em você é o remorso de consciência. Você não pensa nisso. Você tem filhos?


Lacaze: Sim.


Gurdjieff: Quantos?


Lacaze: Três.


Gurdjieff: Três! Bem, se você tem três filhos você deveria saber que sua vida não existe mais para você mesmo, mas para seus filhos. É pelos seus filhos que você faz tudo ou para sua satisfação? Pergunte isso a você mesmo. Se você perguntou-se isso, posso lhe dizer que você não tem remorso de consciência com relação aos seus filhos. Isso pode servir como um fator de lembrança para fazer você trabalhar a fim de se tornar um homem real. Você não tem direito para suas próprias satisfações, isso terminou. Tudo é para seus filhos - tudo que você tem de possibilidades. É uma necessidade objetiva. Mas você não pensa nisso, você continua a agir como egoísta. Sua pergunta prova isso. Portanto tenha remorso de consciência para o futuro. Repare o passado em prol do futuro. Você é obrigado a trabalhar pelos seus filhos. Essa idéia sendo conservada em você pode fazer o papel de um fator, à vezes para lembrar de si, às vezes para lhe dar força para o futuro. E com isso você estará apto a reparar o passado. Você não gosta dessa verdade. Mas eu digo ela como um exemplo. Há mil outras coisas, esse é um exemplo. Mas você pode encontrar algo mais para fornecê-lo com um material capaz de fazê-lo encontrar remorso de consciência. Apenas esse remorso pode cristalizar os fatores que servirão na lembrança de si. O resto não pode. Apenas o remorso de consciência pode. É aqui que você fala, e depois na vida você esquece tudo. Na vida você tem seis dias, vinte e três horas e cinquenta minutos. Aqui, dez minutos. O que você faz e ganha aqui durante dez minutos, você perde na vida. Nunca há um fator de lembrança, apenas o remorso pode lhe dar isso.