terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

G. I. Gurdjieff - Transcrição de uma reunião em Paris



Pergunta: Quando vejo minha nulidade, fico completamente desencorajado. Em seguida, ao ver que consegui vê-la, isso me traz a esperança de volta e uma grande satisfação de mim mesmo. Eu deveria permitir isso?


Gurdjieff: Não. Olhe, aprenda sempre a ver mais e mais. Procure no seu passado. Na sua vida toda. Sofra por todas as suas falhas. Diga para si mesmo que você já tem vinte e cinco anos, que já é tarde demais para fazer algo, que o tempo está contado. Mesmo quando se tem um ano de idade já é tarde. Sempre veja mais e mais seus erros e repare.


Pergunta: Vejo-me em meus sonhos tão claramente, com tal força e desgosto que isso me desperta.


Gurdjieff: Se a pessoa dorme bem por uma noite, ela pode então ter um bom estado desperto. Eu passei quinze anos aprendendo a não sonhar. Não devemos sonhar, devemos fazer. Existem dois estados, o sono e o estado de vigília. Quando dormimos, devemos dormir. Tome um banho gelado, esfregue-se vigorosamente, fique dez minutos com os braços esticados paralelos ao chão e você irá dormir. Se a pessoa dormir bem, a pessoa vigia bem. Se ela sonha, tudo é feito pela metade. As associações nunca param até o fim. Isso é a vida. Mas pode-se parar de prestar atenção às associações. Os sonhos ou associações que continuam são aqueles que são mais habituais e portanto que recorrem.


Pergunta: Apenas a minha cabeça participa no exercício. Como posso evitar isso?


Gurdjieff: A cabeça é apenas o diretor. Ela é o policial com o cassetete que mostra o caminho. A pessoa deve sentir e ter a sensação. Trabalhe sobre o sentir, sobre ter a sensação de você mesmo. “Eu-sou”, “eu-sou”. Não apenas a sua cabeça – o homem todo. Repita, repita, repita. Exercite, exercite, milhares e milhares de vezes. Apenas isso trará resultados.




Pergunta: Quando tenho minhas aulas, preciso parar por um momento para coletar-me. Elas parecem para mim vazias, inúteis, vãs. Como posso impedir isso?


Gurdjieff: Você deve fazer com que suas obrigações entrem no seu trabalho (sobre si). Tudo o que você faz deve se tornar parte do seu trabalho. Essa deve ser sua tarefa. Sua aula deve ser parte da sua tarefa. Sua tarefa é ajudar. Você não deve ver as crianças em suas manifestações, mas no futuro delas. Você deve desejar ajudar esse futuro. Você deve colocar-se no lugar delas. Lembre-se como você era na idade delas. Então você fará com que elas vejam de maneira diferente. Quando você pensar “eu sou” ao mesmo tempo deseje ajudar. Você verá então o quanto as crianças irão lhe amar. Você vai então poder falar para elas matarem os pais e as mães e elas irão fazer isso. Não será nada para elas. Eu vi isso lá com os mestres reais (Magi). Esse é o fermento do trabalho, as crianças. É uma oportunidade para você. Você deve tornar-se um bom trabalhador.


Pergunta: Quando me coloco no lugar de alguém, há sempre uma parte de mim que se recusa, que não participa, que se esconde, que está ocupada consigo mesma e que se satisfaz consigo mesma. É algo que escapa e que não consigo capturar. Por outro lado, assim que obtenho um pequeno resultado no meu trabalho, a vaidade toma conta dele - “Fui eu que fiz isso”- e isso estraga tudo.


Gurdjieff: Vou lhe contar um segredo sagrado. Você se lembra do Belzebu* - existem duas correntes, dois rios. Você tem de atravessar de um para o outro; você é como o peixe cujo elemento natural é a água e que é obrigado a viver no ar. Você deve agora aprender a viver em ambas as correntes de uma só vez. Existe a corrente habitual que é a vida ordinária na qual você vive, e então em você deve existir a outra corrente, a segunda corrente, que é a sua vida interior. Até agora você tem tido contato consigo mesmo apenas quando esteve sozinho, quieto, agora você precisa aprender a fazê-lo com os outros. Quando você está com uma pessoa, permaneça em sua própria corrente, na sua corrente interna.


Pergunta: No sistema, parece que as satisfações, os prazeres, são rejeitados? Todos eles são? Entendi corretamente?


Gurdjieff: Todos os prazeres são merda. Todos os prazeres tornam você um escravo. Sua satisfação. Existem duas qualidades de prazer; se você trabalha bem e obtém um resultado, você pode ter satisfação de si mesmo. Essa é uma satisfação boa que coroa o esforço. A outra, dos prazeres mecânicos, destrói você. Você fica perdido nelas. São todas danosas, exceto para darem à pessoa um relaxamento voluntário, necessário para a meta.


Pergunta: Noto em mim mesmo uma secura, uma ausência de emoções. Vivo ou na indiferença ou na hostilidade. O que deve ser feito?


Gurdjieff: Você me interessa. Quero lhe ajudar. Seus pais ainda estão vivos? Nós não os conhecemos, mas talvez eles tivessem almas. Talvez eles tenham sofrido. Eles não podem fazer nada mais onde estão, eles não têm corpos. Você deve fazer algo por eles. Você deve pensar neles. Você deve retratá-los para si mesmo, vê-los novamente, ter o rosto deles diante de seus olhos, você deve pensar em tudo o que você deve a eles. Você é um pedacinho deles, da vida deles. Você deve amá-los, expressar a sua gratidão a eles. Pense no que eles fizeram por você. Você deve ver seus erros para com eles. Persista nisso, reconstrua as cenas quando você os fez sofrer, chore talvez. Reavive os momentos que você foi um mau filho. Você tem de ter remorso de consciência. Remorso. Deve-se sofrer voluntariamente para reparar. Deve-se pagar pelo passado. O passado deve ser reparado. Procure no seu passado. Crie remorso.

Doutor, faça você também esse exercício. Por hora, seus pais são seu Deus. Você não pode conhecer Deus. Ele está muito longe. Não há lugar para Ele em você. Seus pais são Deus, eles são o futuro lugar para Deus em você. Você deve a eles tudo, a vida, todas as coisas. Trabalhe primeiro com ele, depois haverão outros exercícios.


Pergunta: Tenho feito o trabalho que você deu para nós. Realmente eu amo muito meus pais e descobri uma qualidade de emoção muito especial, durante um segundo talvez, uma partícula do amor real, também um grande sofrimento, um sofrimento real por meus pecados em relação a eles. De remorso. As duas emoções estavam lá ao mesmo tempo, um sofrimento muito vívido e uma felicidade trazida pelo sentimento de amor. Foi o remorso que trouxe a felicidade, pois depois que ele desapareceu, a felicidade também desapareceu. Algumas vezes, quando estou atendendo meus pacientes tenho descoberto em mim mesmo, por um segundo, emoções de amor da mesma qualidade. E naquele momento eu pude aliviar os sofrimentos físicos e trazer a eles um sentimento de felicidade. Há uma conexão?


Gurdjieff: O amor real é a base de tudo, a fundação, a Fonte. As religiões perverteram e deformaram o amor. Era através do amor que Jesus fazia milagres. Amor real junto com magnetismo. Todas as vibrações acumuladas criam uma corrente. Essa corrente traz a força do amor. O amor real é uma força cósmica que passa por nós. Se a cristalizarmos, ela se torna um poder – o maior poder no mundo. Mais para frente você estudará magnetismo em livros, não importa quais, isso irá lhe dar material. E com o amor como base, você vai poder curar paralíticos e fazer os cegos verem.


Pergunta: Tenho me surpreendido pela precisão das sensações observadas por um longo período, tão intensas, tão vívidas, com todas as impressões que eu tinha em mim e que voltaram.


Gurdjieff: Isso é normal. Nossos centros registram tudo, desde a hora do nosso nascimento. Se eu lhe colocar num sono hipnótico, você pode me contar o que aconteceu na primeira semana após o seu nascimento. Tudo está escrito, tudo está lá. Um sujeito colocado para dormir por mim, me disse a pulsação da pessoa que estava ao lado dele no momento em que fiz ele reviver. Tudo está escrito, como numa fotografia, mas mil vezes mais sensível. É por isso que você deve ter cuidado com o que é inscrito. Escolha isso. (Belzebu: “Observe a pureza dos seus rolos”)




Pergunta: Este trabalho traz algo para meus pais? Ele toca meus pais, dá algo a eles?


Grudjieff: Você deve fazer isso por você mesmo, para reparar. Ter remorso. Faça com que o seu remorso fique o mais forte possível. É esse remorso que conta; é o sofrimento que importa; sofrimento voluntário que paga pelo passado, que repara os erros.


Pergunta: Descobri a mesma qualidade de emoções das quais nós falamos, mas ela me dá tamanha plenitude interior, uma tamanha sensação de felicidade que eu não sinto mais remorso; eu reluto em ter essa felicidade, pois veio sem ser merecida.


Gurdjieff: Você tem imaginação e fantasia. Sempre disse isso. Você é um representante da arte. Um tolo. Não tem peso. É leve. Filosofia, imaginação. Um estado é um resultado. É isso que dá peso. Esse é o contrapeso da felicidade real que segue passo a passo com isso; ao mesmo tempo para que possa ser genuíno, não se deve ter um sem o outro. Sua natureza tem uma tendência (o resultado da inércia); você se permite ir na direção dessa tendência de ter estados extraordinários sem uma base real, sem peso. Você deve eliminar isso, mandar embora. Assim que um estado de satisfação surgir, faça “tchik”. Esmague-o, elimine-o. Trabalhe sobre remorso, lembre de si, reavive as cenas em que você foi um mau filho, quando você fez seus pais chorarem, talvez. Sinta novamente em todos os detalhes, encontre seus erros novamente. Busque no seu passado. Sofra. Nesse sofrimento você pode obter felicidade real dada pelo amor real.


Existem duas coisas diferentes sob leis diferentes: (1) o corpo orgânico; (2) o corpo psíquico. O corpo orgânico obedece suas leis. Ele apenas deseja satisfazer suas necessidades – comer, dormir, fazer sexo. Ele não conhece nada mais. Ele não quer mais nada. É um verdadeiro animal. Devemos senti-lo como um animal. Devemos senti-lo como um estranho. Devemos subjugá-lo, treiná-lo e fazê-lo obedecer, em vez de obedecê-lo.


O corpo psíquico sabe algo diferente do que o corpo orgânico. Ele tem outras necessidades, outras aspirações, outros desejos. Ele pertence a um mundo diferente, ele é de uma natureza diferente. Há um conflito entre esses dois corpos – um deseja, o outro não. É uma luta que devemos reforçar voluntariamente, através do nosso trabalho, através da nossa vontade. Essa luta que existe naturalmente é o estado específico do homem, o que devemos usar para criar uma terceira coisa, um terceiro estado diferente dos outros dois: o Mestre, e que está unido a algo mais.


A tarefa é, portanto, algo preciso que reforça essa luta, pois através da luta, e apenas através da luta, pode uma nova possibilidade de ser nascer. Por exemplo, meu organismo tem o hábito de fumar. Essa é uma necessidade dele. Eu não quero fumar – eu elimino esse hábito. A necessidade está sempre lá mas eu recuso satisfazê-la. Há uma luta, uma voluntária luta consciente que chama a terceira força. É a terceira força que será o fator - “eu” - que irá conciliar e criar o equilíbrio.


O corpo é um animal. A psique é uma criança. Devemos educar os dois. Pegue o corpo, faça-o entender que ele deve obedecer e não comandar. Ponha cada um em seu lugar. Devemos conhecer a nós mesmos. Devemos ver o que acontece. Assuma uma tarefa que esteja dentro da sua possibilidade, bem pequena para começar. Em relação a comer, por exemplo. Relacionada a um hábito. Cada um conhece a si mesmo e pode encontrar uma tarefa, é uma coisa interior da pessoa. Uma vontade que seja oposta a uma necessidade e crie luta. A única possibilidade de criar um segundo corpo é através do acúmulo de uma substância diferente. A única meta é que tudo deve servir a essa meta.


Pergunta: Eu entendi totalmente durante a semana tudo o que você me falou a semana passada sobre o corpo físico e o corpo psíquico e trabalhei nessa direção; eu lutei. Uma noite estava dormindo, e fui acordado por meu filho – tenho um filho de quatro anos - que tinha sido picado por mosquitos e que estava com dor e começou a chorar e chamar por mim. Ele estava chorando e sofrendo. Eu fui até ele e porque ele estava chorando e sofrendo, antes mesmo que eu tivesse tempo de me ver, eu bati nele. Eu não me permiti ir dormir novamente. Como posso subjugar essa violência em mim mesmo? Vi o que meu corpo é, do que ele é capaz e suas reações após uma semana de trabalho sobre ele.


Gurdjieff: Existem forças ao seu redor, estranhas a você. É possível que quando um homem realmente trabalha, realmente deseja lutar, elas produzam um evento como esse. Elas podem até mesmo criar os mosquitos. De qualquer forma, se foi isso ou se foi o acaso, nada poderia ter sido melhor. Ali você sentiu, você entendeu, não com a sua cabeça apenas. Eu estou muito contente e peço que a partir de agora você tome nota de tudo o que acontece no seu trabalho por uma semana, duas semana, três semanas e você irá falar sobre isso aqui, pois isso vai ser útil para os seus companheiros. E não esqueça que agora seu filho é seu mestre. Agradeça-o. Por mim, ele é meu amigo. Eu responsabilizo você com uma comissão para ele; cinco doces por dia durante um ano.



*Referência ao livro '"Relatos de Belzebu a seu neto”