sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Farid ud-Din Attar - O Vale do Conhecimento

(Depois de falar sobre os dois primeiros vales a serem atravessados pelos pássaros, a Poupa começa a falar do terceiro vale)

“Depois do vale que acabo de falar, um outro se apresenta aos olhos do peregrino. É o vale do conhecimento, que não tem princípio e nem fim; não há ninguém que possa ter outra opinião a respeito da extensão do caminho que deve se percorrer nesse vale. Realmente não há conhecimento semelhante a este; porém um é o viajante temporal, outro o viajante espiritual. Neste vale, cada peregrino toma um caminho diferente; espíritos diferentes obedecem regras diferentes. A alma e o corpo, pela perfeição ou pelo debilitamento, estão sempre em progresso ou decadência. Necessariamente o caminho espiritual não se manifesta senão nos limites das respectivas forças de cada um. De fato, no caminho percorrido por Abraão, o amigo de Deus, como poderia a frágil aranha seguir o passo de elefante? A marcha de cada indivíduo será relativa à excelência que ele puder adquirir, e cada um se aproxima da meta na medida de sua disposição. Se um mosquito voasse com toda sua força poderia igualar a impetuosidade do vento? Nossas trilhas são diferentes, nenhum pássaro conhece a rota secreta pela qual o outro vai, e o discernimento nos chega por sinais diferentes. Assim, uma vez que há diversas maneiras de percorrer esse espaço, cada pássaro não pode voar da mesma maneira. O conhecimento espiritual tem diferentes faces. Uns encontram o mihab, outros o ídolo.”


Quando o sol da verdade brilhar na cúpula deste caminho que não se poderia descrever adequadamente, cada um será iluminado segundo seu mérito e encontrará a posição que lhe está assinalada no conhecimento da verdade. Quando o mistério da essência dos seres mostrar-se claramente, a fornalha do mundo se converterá num jardim de flores. O adepto verá a amêndoa, ainda que envolvida por sua casca. Ele não verá mais a si mesmo e não perceberá senão o Amigo; em tudo o que veja, verá a Sua face; em cada átomo verá o todo; contemplará sob o véu milhões de segredos tão brilhantes quanto o sol. Contudo, quantos se perderam nessa busca para que um só pudesse descobrir esses mistérios? Há que ser perfeito para descobrir este difícil caminho e mergulhar neste tormentoso oceano. Quando se tem o verdadeiro gosto por estes segredos, sente-se a cada instante um novo ardor para conhecê-los. Aquele que está realmente agitado pelo desejo de penetrar esses mistérios ofereceria mil vezes a vida em sacrifício para conhecê-los. Mesmo quando alcançares com tua mão o glorioso trono, não deixes de pronunciar as gloriosas palavras do Corão: “Há ainda algo mais?” Mergulha no oceano do conhecimento, ou ao menos lança a poeira do caminho sobre tua cabeça. Quanto a ti que estás adormecido e a quem não se pode cumprimentar pelo triunfo, por que não estás de luto? Se não tens a felicidade de unir-te ao objeto de teu afeto, levanta e veste ao menos o luto da ausência. Tu que ainda não contemplaste a beleza de teu Amigo, não permaneças mais sentado, levanta-te e procura esse segredo; e se não conheces a maneira de penetrá-lo, envergonha-te. Até quando serás como um asno sem cabresto?




O Amante adormecido


Um homem apaixonado, exausto e com o espírito turbado pelo excesso de seu amor, adormeceu gemendo sobre uma colina tumular. Sua amante passou pelo lugar onde ele repousava e encontrou-lhe adormecido e privado de sentimento. Imediatamente ela escreveu um bilhete apropriado à circunstância e pregou-o no manto do amante. Quando ele despertou de seu sono, leu a carta, e seu coração ficou ensanguentado. Estava escrito: “Ó tu, que estás surdo e mudo! Se és um mercador, o mercado está aberto, levanta-te e trabalha para ganhar dinheiro; se és um asceta, vela durante a noite, reza a Deus até a aurora e seja Seu escravo; porém, se és um amante, envergonha-te. O que tem a ver o sono com os olhos do amante? Ele mede o vento durante o dia, e à noite seu ardente coração toma o lugar da lua resplandescente. Como não és nem isto e nem aquilo, ó tu que estás destituído de todo o brilho! não te vanglories falsamente do amor. Se um amante pode dormir fora de sua mortalha, eu o chamarei de amante, mas amante de si mesmo. Uma vez que chegaste ao amor pela loucura, possa teu sono ser como tua ignorância, profundo e prolongado. Que o sono te seja agradável! Porém és digno de amar”.


O Amor Sentinela

Um amante encarregado de montar guarda durante a noite, enamorou-se perdidamente; estava dia e noite sem sono e sem repouso. Um de seus amigos lhe disse: “Ó tu que estás privado do sono!

Necessitas dormir ao menos uma noite”. - “Ó amor”, respondeu ele, “. Sou um amante e um vigia; como poderia eu dormir e assim quebrar meu voto duplo, é adequado às minhas funções de sentinela? Já que o sono não convém a um sentinela, é vantajoso que ele esteja apaixonado. Esse sentimento, que consiste em jogar com vida, apossou-se de mim, identificou-se com minhas funções, fazendo-as entrar em seu domínio. Como poderia dormir se não encontro sono em parte alguma, e nem posso tomá-lo emprestado de ninguém? A cada noite o amor me põe a prova, obrigando-me assim a manter a cautela. O amor está sempre vigilante, e não permite que seu sentinela adormeça.”

Às vezes, de dor, esse enamorado chegava a golpear seu roso e sua cabeça com a clava para ficar acordado. Se, por acaso, privado estava de sono e alimento, ele adormecia um instante e sonhava com seu amor. Durante a noite ele não deixava ninguém passar sem gritar: “Quem vive?”.

Um dia outro amigo lhe disse: “Ó tu, que te ocupas zelosamente de tuas funções e do ardor de teu amor! Não tens um instante de sono durante a noite”. O sentinela respondeu: “O sono deve ser estranho ao sentinela. Assim como não convém que haja no rosto do amante outra água que não seja lágrima, a vigília convém ao sentinela. Ele deve habituar-se à vigília, como os amantes à desonra. Pode ocorrer o sono quando se chora em vez de dormir? Quando se é ao mesmo tempo amante e sentinela, o sono abandona os olhos. O amor é agradável ao sentinela, pois a insônia integrou-se à sua essência. Aquele para quem a insônia é agradável estará alguma vez propenso ao sono?”



Se estás à procura das coisas espirituais, não durmas, ó homem! porém se te contentas em apenas falar, então o sono te convém. Guarda bem a fortaleza de tua oração, pois há salteadores nos arredores. O caminho está bloqueado por ladrões; protege pois desses bandidos a jóia de teu coração.

Quando tiveres a virtude que consiste em saber guardar teu coração, teu amor pela ciência espiritual manifestar-se-á prontamente. Pois bem, esse conhecimento virá ao homem sem dúvida nenhuma pela vigília em meio ao oceano de sangue de seu coração. Aquele que por muito tempo suporta a vigília tem seu coração desperto quando se aproxima de Deus. Já que é necessário privar-se do sono para ter desperto o coração, dorme pouco, a fim de conservar a fidelidade do coração. Quando tua existência arruinar-se, devo repetir-te: “Aquele que se perde no oceano dos seres não deve deixar ouvir um só grito de queixa. Os verdadeiros amantes partiram para afogar-se no sono, embriagados de amor. Golpeia tua cabeça, pois esses excelentes homens fizeram o que devia ser feito”. Aquele que tem realmente o gosto do amor espiritual tem em sua mão a chave dos dois mundos. Se é uma mulher, converter-se-á num homem admirável, e se é um homem, tornar-se-á um oceano profundo.



Sentença de Abbaçah sobre o Amor


Um dia Abbaçah disse: “Ó homem de amor, que irradia um pouco da paixão do verdadeiro amor, se é um homem pode tornar-se mulher e se é mulher pode tornar-se homem. Tu viste uma mulher sair de Adão e não ouviste falar de um homem nascido de uma virgem? Enquanto não fizeres tudo que deve ser feito, não alcançarás teus intentos. Quando o reino de Deus chegar, então obterás o resultado que desejas; tudo o que tens no coração se realizará.

Sabe que esse reino é o verdadeiro e esse império é o real. Não consideres este mundo mais que um átomo do mundo espiritual. Se te contentas com o reino deste mundo, perderás o da eternidade. A verdadeira realeza reside no conhecimento espiritual; esforça-te para possuí-lo. Aquele que se embriaga na contemplação das coisas espirituais é rei de todas as criaturas do mundo. Para ele o reino das nove cúpulas é somente um navio do Oceano. Se os reis do mundo pudessem saborear um só gole da água desse oceano sem limites, cairiam todos no luto da aflição e não ousariam olhar uns aos outros.”