sábado, 27 de fevereiro de 2010

Jalaluddin Rumi - Desmame-se / Tatuagem em Qazwin / O grão de bico


Pouco a pouco, desmame-se.

Isso é a essência do que tenho a dizer.



De um embrião cujo alimento vem pelo sangue,

mude para um nenê bebendo leite,

para uma criança comendo comida sólida,

para um buscador de sabedoria,

para um caçador de um jogo mais invisível.


Pense como é ter uma conversa com um embrião.

Você poderia dizer: “O mundo lá fora é vasto e complexo.

Existem campos de trigo, cadeias de montanhas

e pomares floridos.



À noite há milhões de galáxias e na luz do dia

a beleza de amigos dançando num casamento.”


Você pergunta ao embrião por que ele continua confinado

no escuro com os olhos fechados.


Escute a resposta:


“Não existe nenhum 'outro mundo'.

Sei apenas do que eu experimentei.

Você deve estar alucinando."

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Em Qazwin, eles têm o costume de se tatuar

com tinta azul para ter boa sorte, nas costas

das mãos, nos ombros ou em qualquer parte.


Um certo homem vai ao seu barbeiro

e pede que lhe seja feito um poderoso e heróico leão azul

em sua escápula. “E faça-o com gosto!

Eu tenho ascendente em leão. Quero muito azul!”


Mas assim que a agulha começa a perfurar,

ele grita:

“O que você está fazendo?”


“O leão.”


“Com que membro você começou?”


“Comecei com a cauda.”


“Bem, deixe a cauda de fora. O rabo desse leão

está num lugar ruim para mim. Ele me dá gases.”


O barbeiro continua, e imediatamente

o homem berra.


“Ooooooooooo! Que parte agora?”


“A orelha.”


“Doutor, vamos fazer um leão sem orelhas desta vez.”


O barbeiro balança sua cabeça e mais uma vez a agulha,

e mais uma vez uma queixa:

“Que parte você está agora?”


“A barriga.”


“Prefiro um leão sem barriga.”


O mestre que está fazendo o leão

fica um longo tempo com os dedos nos dentes .

Finalmente, ele joga fora a agulha.


“Ninguém jamais foi solicitado a fazer uma coisa dessas! Criar um leão

sem um rabo, uma cabeça ou um estomago.

Nem mesmo Deus poderia fazer isso!”



Irmão, aguente a dor.

Fuja do veneno dos seus impulsos.

Os céus se curvarão ante sua beleza, se você fizer isso.

Aprenda a acender a vela. Nasça com o sol.

Afaste-se da caverna do seu sono.

Dessa forma um espinho expande-se numa rosa.

Uma partícula resplandece no universal.


O que é para ser glorificado?

Tornem-se partículas.


O que é saber algo sobre Deus?

Queime dentro daquela presença. Queime.


O cobre se derrete no elixir curativo.

Assim, derreta o seu ser na mistura

que sustenta a existência.


Você aperta suas duas mãos juntas,

Determinado a não desistir de dizer “eu” e “nós”.

Esse aperto o bloqueia.

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O grão de bico pula quase para fora da panela
na qual ele está sendo fervido.

'Por que você está fazendo isso comigo?'

O cozinheiro o derruba com a concha.

'Não tente pular para fora.
Você pensa que eu estou lhe torturando.
Estou lhe dando sabor,
de modo que você possa misturar-se com os temperos e com o arroz
e ser a graciosa vitalidade de um ser humano.

Lembre-se de quando você bebeu chuva no jardim.
Era para isso.'

Primeiro a graça. Prazer sexual,
então uma nova vida fervendo se inicia,
e o Amigo tem algo bom para comer.

Eventualmente o grão de bico
dirá para o cozinheiro:

'Ferva-me um pouco mais.
Bata-me com a colher.
Não posso fazer isso sozinho.


Sou como um elefante que sonha com os jardins
no Hindustão e não presta atenção
ao seu cocheiro. Você é meu cozinheiro, meu cocheiro;
você é minha passagem para a existência. Eu amo o seu cozimento.'

O cozinheiro diz:

'Eu já fui como você,
fresco da terra. Então eu fervi no tempo,
e fervi no corpo, duas fervidas ardentes.


Minha alma animal cresceu poderosa.
Eu controlei-a com práticas,
e fervi um pouco mais, e fervi
ainda mais uma vez,
e me tornei seu professor.'

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Rodney Collin - Teoria da Harmonia Consciente

(Notas relacionadas ao trabalho sobre si, baseado nos ensinamentos do Quarto Caminho)


Considerando a circulação livre como uma condição de saúde, é muito claro que uma circulação forte traga saúde e novas possibilidades para todas as partes de um organismo. Onde há constrição, a doença ataca. Penso que isso seja verdade em todas as escalas. Obviamente, é assim no corpo. Mas também é assim na nossa vida, onde o que circula é a memória. Aquelas partes ou incidentes em nossas vidas que não queremos lembrar, começam a apodrecer, e seu veneno pode se espalhar até mesmo para o presente em todos os tipos de medos e prejuízos. Por outro lado, através de plena memória do passado, o que agora entendemos e almejamos pode fluir de volta para essas partes, curar, mudar sua natureza.
Vemos a mesma coisa num grupo. Quando as idéias e os sentimentos fluem com liberdade e confiança entre todas as pessoas nele, há saúde e vida. Quando um obstáculo surge e uma pessoa se desentende com a outra e não a escuta, novamente venenos se desenvolvem, e portano, os preconceitos tem de ser derretidos ou as discussões resolvidas, antes que a circulação e o grupo possam ficar bem novamente.
Quando nos lembramos de coisas erradas que fizemos, uma espécie de inflamação desenvolve-se. Há um choque entre o que realmente fizemos e aquilo que passamos a sentir, desde então, como o correto. Nossas idéias presentes, carregadas pela corrente da memória, assim como os glóbulos brancos no sangue, encontram um lugar envenenado e tentam curá-lo. Até que façam isso, o local pode ficar muito dolorido e inflamado. Esse é um sinal de que algo está acontecendo.

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O remorso é uma coisa muito estranha. Se pudéssemos imaginar o remorso sem qualquer emoção negativa ligada a ele, poderíamos aprender muito sobre isso.
Mas esses momentos que chamamos por esse nome geralmente acontecem quando vemos a nós mesmos e os resultados de nossas ações passadas sem querer. Penso que devemos fazer isso intencionalmente, pretendendo isso. Temos de tentar lembrar de nós mesmos ao mesmo tempo, lembrar as nossas vidas em detalhe. Através de uma lembrança real e intencional veremos os resultados de nossas ações e atitudes passadas, veremos com quem estamos endividados. Eventualmente, ninguém pode mover-se a menos que suas dívidas sejam pagas. Mas antes de serem pagas, elas devem ser vistas e reconhecidas. E isso só é possível através da lembrança de si*.

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Tudo pode mudar com o tempo, sem limite, mas, provavelmente, numa determinada ordem relacionada exatamente ao pagamento do Karma.

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Eu tenho um entendimento muito forte de que só é possível sair de nossa posição pagando primeiramente todas os nossos débitos. E uma vez que, de fato, estamos em débito com todas as pessoas que já conhecemos, isso significa que temos de corrigir todas as relações na vida corrente, se isso ainda for possível, ou interiormente na nossa mente, se não for possível. Evidentemente a oração correta pode ser uma maneira de fazer isso.
Marcou muito para mim como Ouspensky, ao falar sobre seus pais, parentes ou velhos amigos, sempre recordava as suas possibilidades, seus melhores lados, o que poderiam tornar-se, e nunca lembrava algo negativo ou desagradável sobre eles. Isso também parece ligado com a mesma idéia - de tornar as pessoas melhores do que são.
Para qualquer pessoa que falasse sobre os estados superiores de consciência, ou emoções positivas, ou experiências do homem superior, Ouspensky costumava responder: "Mais tarde você vai ver...' Ou 'Ainda não. . '. ou "Nós vamos chegar a esse ponto mais tarde. . '. ou "Quando chegar a tal ponto, você. . '. sempre com o entendimento de que a pessoa poderia e acabaria por chegar às mais altas possibilidades. Dessa forma, ele tornou possível para eles fazerem isso. E desse mesmo modo, sem que se soubesse como isso acontecia, ele tirava o medo, o medo do fracasso.

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Quando as pessoas estão no caminho certo, provavelmente deveríamos perpetuar apenas aquilo que pertence à sua compreensão mais elevada. Algo relacionado com tornar as pessoas melhores do que elas são, anulando os seus lados fracos. De alguma forma, dessa maneira elas são ajudadas e a pessoa ajuda a si mesma. É bem misterioso.

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Existe alguma matemática interior de causa e efeito que invisivelmente regula a vida dos homens e nenhum sofrimento real é desperdiçado. Apenas o sofrimento imaginário é puro desperdício, levando a lugar nenhum. Sofrimento real é pagamento – pelo que, só Deus sabe, pois não conseguimos lembrar o que estamos devendo – mas é o pagamento de algo que, mais cedo ou mais tarde, deverá ser pago. Apenas não sofra mais do que é necessário, esse é o ponto. Pois sofrer mecanicamente, começar a sofrer por hábito, é começar toda a cadeia novamente. Se podemos evitar isso, mais cedo ou mais tarde o tempo difícil deve passar, e todos os tipos de novas possibilidades aparecem, as quais finalmente, então, através da provação- seremos capaz de usar.

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Alguém passa por sua vida e deixa uma imagem que você não consegue esquecer, nem encontrar conforto. Mas você não deixou tais traços na vida de alguma outra pessoa, sem se importar ou mesmo sem saber? Todo nós já não fizemos isso? Tudo deve se esgotar. Todas as dívidas devem ser pagas. Tudo o que causamos temos de sofrer, antes de podermos nos tornar livres. Portanto, aqueles que desejam a liberdade só podem dizer: 'Venha o que vier, eu vou aceitar'.
Não é porque eu tenha o direito dizer o que digo, mas sim porque foi mostrado que é assim. Nos últimos meses de Ouspensky vimos como ele aceitava estar velho, doente, feio, desamparado, com dor, mal compreendido; e realmente ele fez de tudo para impedir que os outros o confortassem, para sofrer conscientemente, para tornar mais difícil que as pessoas o compreendessem. Pois ser compreendido é o que todos os homens mais desejam, mais do que comida, conforto, até mesmo mais que a vida. E sacrificar ser compreendido pelas pessoas comuns de maneira ordinária é ao mesmo tempo tornar-se livre, e tornar possível um entendimento completamente diferente para aqueles que desejem isso. A partir dessa aceitação absoluta do que tinha de acontecer, do esforço para pagar mais, de sofrer de bom grado e pagar antecipadamente a conta apresentada pelo destino, Ouspensky tornou-se um outro homem e, em parte, vimos como isso foi feito.
Assim, enquanto que para as pessoas comuns só se pode desejar aliviar o sofrimento tanto quanto possível, para aqueles que se conectaram com este caminho de escape, só podemos dizer: "Se você puder sofrer da maneira correta, é bom. Se não puder, não importa.”

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Estou muito interessado na idéia do sofrimento voluntário e involuntário. Primeiro “sacrifique o seu sofrimento”; apenas se a vida toda é vivida de acordo com esse princípio, a idéia do sofrimento intencional parece se tornar prática. Eu acho que é quase impossível para aqueles cujas vidas estão cheias de sofrimento involuntário serem capazes de conceber o sofrimento como uma coisa positiva. Seu objetivo será sempre, e deve ser, fugir do sofrimento. Ao mesmo tempo, isso me parece um objetivo muito limitado. Eu me lembro como me chocou a primeira vez que ouvi uma certa pessoa dizer que o seu objetivo era "não sofrer". Depois eu vi que não poderia ser diferente, porque com toda a força dela, ela estava muito à mercê do sofrimento involuntário.

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O sofrimento é um fixador, como o moderante utilizado para fixar um corante. Ele tende a fixar qualquer parte da natureza do homem que esteja mais sobressalente enquanto o sofrimento está sendo suportado. Naturalmente, se for involuntário, tende a trazer com ele ressentimento, auto-piedade e assim por diante, e fixa-os. Por outro lado, se o homem se recusa a sofrer, exceto quando ele esteja fazendo esforços para um objetivo definido e sabendo o que quer, então ali ele tende a fixar o objetivo e a determinação. Isso é muito útil.

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Precisamos de sofrimento. Nós todos temos de ser purificados. E o sofrimento é o grande purificador. Podíamos desejar que ele não viesse, fosse para nós ou para aqueles a quem desejávamos crescimento e purificação mais do que qualquer outra coisa?

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Se somos pressionados duramente, é para que possamos encontrar fé e nos tornarmos livres. Nosso passado está cheio de lugares fracos, de evasões, desonestidades que pensamos que foram enterrados e esquecidos. Mas eles têm de eclodir. Às vezes é muito amargo. Agora, com essa influência forte que está brilhando sobre nós, todas as falhas estão aparecendo. Nada mais pode ser escondido. Pois tudo tem de ser firme e sólido sob o nosso trabalho. Portanto, quando somos pressionados, lutando com as consequências do passado, é realmente uma prova de que nosso trabalho está forte e correto. Significa que nos está sendo dada a oportunidade de ir mais rápido. Se todas as consequências do passado vêm à superfície é assim que podemos enfrentá-las e nos livrarmos delas de uma vez por todas. E sob uma grande pressão podemos encontrar uma fé que, no conforto, jamais precisaríamos.

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Estou certo que, de certa forma é um princípio esotérico que as gravações** têm de ser 'tornadas corretas'. Não é uma questão de esconder os erros, os dissabores ou qualquer coisa desse tipo. Mas se alguém na peça age fora do personagem, por assim dizer, a gravação tem de corrigir isso. O texto da peça tem que ser mais perfeito do que a peça em si. Como isso pode ser é praticamente impossível dizer. O Novo Testamento deve ser o exemplo perfeito: está tudo certo.

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Tive a sensação de que é preciso repassar com cuidado a nossa vida e pagar nossos débitos. E isso pareceu de alguma forma envolver pedir perdão a todos que conhecemos; pois afinal de contas, estamos em débito, de uma forma ou de outra, com todas as pessoas que já conhecemos, prejudicamos de alguma forma, seja grande ou pequena, e somos nós que devemos procurar ser perdoados de nossos débitos, se quisermos nos tornar livres para nos movermos.

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A vida é muito difícil para quem vê contradições nos outros, mas não em si mesmo.

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Enquanto algumas pessoas estão escravizadas ao ficarem culpando os outros, outras ficam igualmente escravizadas culpando a si mesmas. É a mesma coisa. A Liberdade é quando vemos a nós mesmos de forma imparcial da mesma forma que vemos um desconhecido interessante, sem elogios ou censura.

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Temos de admitir que infelicidade, experiências dolorosas e até mesmo erros óbvios, podem nos ensinar muito, e tomadas da maneira correta essas mesmas falhas e desconfortos podem ser a matéria-prima da qual a compreensão e a vontade são feitas. A reconstrução da vida de alguém não necessariamente significa que essas dificuldades devam ser evitadas. Pelo contrário, pode implicar que nós tenhamos de enfrentar as dificuldades que nesta vida temos evitado.

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É muito doloroso ver inevitavelmente que falhamos, quando sabemos que os incidentes do sono que normalmente parecem tão pequenos, não são pequenos de maneira alguma, e sim determinam toda a nossa vida. Às vezes é preciso deixar a amargura do fracasso ir fundo ao máximo e não tentar nos salvarmos dela. Ao mesmo tempo, penso que é muito importante compreender que essa é a nossa natureza, temos todos falhado neste caminho, e iremos falhar, sendo o que somos. É como se tivéssemos de engolir tudo isso, aceitar os outros por aquilo que são e a nós mesmos pelo que somos e irmos para um lugar novo além de ambos, onde possamos olhar para o mundo e para nós mesmos com uma espécie de tolerância objetiva e com carinho. Não é nesse nível, numa luta entre uma parte de nós mesmos e outra parte que a solução reside, mas em chegar além, num lugar calmo onde os dois lados pareçam igualmente pequenos e insignificantes.
Estivemos na Catedral em Florença. Você entra na porta principal e encontra todas as pessoas, os sacerdotes, os meninos do coro, turistas, agitando-se no nível do solo. Ali, cada um parece importante para si mesmo, e de fato é. Mas então, penosamente você sobe uma escada espiral escura em direção à cúpula e, finalmente, sai numa galeria que corre em volta do interior dela. De repente, toda a Igreja estende-se abaixo de você com todas aquelas pessoas pequeninas indistinguíveis umas das outras, e tanto você quanto elas estão igualmente perdidos no grande vazio que parece fazer todos os nossos pensamentos anteriores desaparecerem como inúteis. De alguma forma, essa galeria parecia significar o conhecimento de si mesmo como se é realmente, a plena consciência de si.
Mas quando tínhamos visto o máximo que podíamos suportar, emergimos numa escada oculta que subia para o topo da cúpula e finalmente saía para fora. Então, havia toda Florença, e as colinas, bosques, aldeias e paisagens distantes espalhavam-se abaixo de você debaixo do sol e do céu. Tudo o que tínhamos visto e sentido no interior da catedral, dentro de nós mesmos, mais uma vez desapareceu em relação ao grande universo. Pois essa era a realidade, e os outros apenas uma imagem dela em pedra. De modo que essa vista, bem ali debaixo da cruz, de repente parecia uma imagem da verdadeira consciência, a consciência objetiva do mundo como ele é, a liberdade.

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Quando novas tensões e forças começam a trabalhar em nós, elas causam uma revolução muito dolorosa nas profundezas de nosso ser. Para alguns, a maior dificuldade é suportar a si mesmo, e não ficar perdido em remorso. Mas aquele que aprendeu a não se levar tão a sério, não se deixa tornar fascinado por sua cólica espiritual.

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Parece uma das condições de passar para outro nível, que devêssemos sentir e reconhecer que tudo que temos feito neste nível é um fracasso total em comparação com o que deveria ter sido feito. Acho que Ouspensky realmente sentia isso e sei que ele realmente passou para um outro nível, onde tudo é possível novamente.

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Todos nós continuamente passamos da sinceridade para a pretensão, da pretensão para o remorso, do remorso para a sinceridade. Temos de observar o ciclo, mas não deixarmos nos abater por isso. É da natureza humana. Nós aceitamos, tentando olhar para isso de um ponto de vista superior, mais objetivo, mais impessoal. Culpar a nós mesmos em demasia é levar-se demasiadamente a sério. Ninguém fica desanimado por seus próprios fracassos, exceto aquele que foi vão o bastante para acreditar estar acima de toda falha.

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Remorso e amor são a mesma coisa. Remorso é amor real, ou melhor, o amor é o prazer, o remorso a dor. Se estamos realmente acordados sentimos remorso na proporção dos prejuízos que fizemos aos outros, é o pagamento.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

G. I. Gurdjieff - Transcrição de uma reunião em Paris



Pergunta: Quando vejo minha nulidade, fico completamente desencorajado. Em seguida, ao ver que consegui vê-la, isso me traz a esperança de volta e uma grande satisfação de mim mesmo. Eu deveria permitir isso?


Gurdjieff: Não. Olhe, aprenda sempre a ver mais e mais. Procure no seu passado. Na sua vida toda. Sofra por todas as suas falhas. Diga para si mesmo que você já tem vinte e cinco anos, que já é tarde demais para fazer algo, que o tempo está contado. Mesmo quando se tem um ano de idade já é tarde. Sempre veja mais e mais seus erros e repare.


Pergunta: Vejo-me em meus sonhos tão claramente, com tal força e desgosto que isso me desperta.


Gurdjieff: Se a pessoa dorme bem por uma noite, ela pode então ter um bom estado desperto. Eu passei quinze anos aprendendo a não sonhar. Não devemos sonhar, devemos fazer. Existem dois estados, o sono e o estado de vigília. Quando dormimos, devemos dormir. Tome um banho gelado, esfregue-se vigorosamente, fique dez minutos com os braços esticados paralelos ao chão e você irá dormir. Se a pessoa dormir bem, a pessoa vigia bem. Se ela sonha, tudo é feito pela metade. As associações nunca param até o fim. Isso é a vida. Mas pode-se parar de prestar atenção às associações. Os sonhos ou associações que continuam são aqueles que são mais habituais e portanto que recorrem.


Pergunta: Apenas a minha cabeça participa no exercício. Como posso evitar isso?


Gurdjieff: A cabeça é apenas o diretor. Ela é o policial com o cassetete que mostra o caminho. A pessoa deve sentir e ter a sensação. Trabalhe sobre o sentir, sobre ter a sensação de você mesmo. “Eu-sou”, “eu-sou”. Não apenas a sua cabeça – o homem todo. Repita, repita, repita. Exercite, exercite, milhares e milhares de vezes. Apenas isso trará resultados.




Pergunta: Quando tenho minhas aulas, preciso parar por um momento para coletar-me. Elas parecem para mim vazias, inúteis, vãs. Como posso impedir isso?


Gurdjieff: Você deve fazer com que suas obrigações entrem no seu trabalho (sobre si). Tudo o que você faz deve se tornar parte do seu trabalho. Essa deve ser sua tarefa. Sua aula deve ser parte da sua tarefa. Sua tarefa é ajudar. Você não deve ver as crianças em suas manifestações, mas no futuro delas. Você deve desejar ajudar esse futuro. Você deve colocar-se no lugar delas. Lembre-se como você era na idade delas. Então você fará com que elas vejam de maneira diferente. Quando você pensar “eu sou” ao mesmo tempo deseje ajudar. Você verá então o quanto as crianças irão lhe amar. Você vai então poder falar para elas matarem os pais e as mães e elas irão fazer isso. Não será nada para elas. Eu vi isso lá com os mestres reais (Magi). Esse é o fermento do trabalho, as crianças. É uma oportunidade para você. Você deve tornar-se um bom trabalhador.


Pergunta: Quando me coloco no lugar de alguém, há sempre uma parte de mim que se recusa, que não participa, que se esconde, que está ocupada consigo mesma e que se satisfaz consigo mesma. É algo que escapa e que não consigo capturar. Por outro lado, assim que obtenho um pequeno resultado no meu trabalho, a vaidade toma conta dele - “Fui eu que fiz isso”- e isso estraga tudo.


Gurdjieff: Vou lhe contar um segredo sagrado. Você se lembra do Belzebu* - existem duas correntes, dois rios. Você tem de atravessar de um para o outro; você é como o peixe cujo elemento natural é a água e que é obrigado a viver no ar. Você deve agora aprender a viver em ambas as correntes de uma só vez. Existe a corrente habitual que é a vida ordinária na qual você vive, e então em você deve existir a outra corrente, a segunda corrente, que é a sua vida interior. Até agora você tem tido contato consigo mesmo apenas quando esteve sozinho, quieto, agora você precisa aprender a fazê-lo com os outros. Quando você está com uma pessoa, permaneça em sua própria corrente, na sua corrente interna.


Pergunta: No sistema, parece que as satisfações, os prazeres, são rejeitados? Todos eles são? Entendi corretamente?


Gurdjieff: Todos os prazeres são merda. Todos os prazeres tornam você um escravo. Sua satisfação. Existem duas qualidades de prazer; se você trabalha bem e obtém um resultado, você pode ter satisfação de si mesmo. Essa é uma satisfação boa que coroa o esforço. A outra, dos prazeres mecânicos, destrói você. Você fica perdido nelas. São todas danosas, exceto para darem à pessoa um relaxamento voluntário, necessário para a meta.


Pergunta: Noto em mim mesmo uma secura, uma ausência de emoções. Vivo ou na indiferença ou na hostilidade. O que deve ser feito?


Gurdjieff: Você me interessa. Quero lhe ajudar. Seus pais ainda estão vivos? Nós não os conhecemos, mas talvez eles tivessem almas. Talvez eles tenham sofrido. Eles não podem fazer nada mais onde estão, eles não têm corpos. Você deve fazer algo por eles. Você deve pensar neles. Você deve retratá-los para si mesmo, vê-los novamente, ter o rosto deles diante de seus olhos, você deve pensar em tudo o que você deve a eles. Você é um pedacinho deles, da vida deles. Você deve amá-los, expressar a sua gratidão a eles. Pense no que eles fizeram por você. Você deve ver seus erros para com eles. Persista nisso, reconstrua as cenas quando você os fez sofrer, chore talvez. Reavive os momentos que você foi um mau filho. Você tem de ter remorso de consciência. Remorso. Deve-se sofrer voluntariamente para reparar. Deve-se pagar pelo passado. O passado deve ser reparado. Procure no seu passado. Crie remorso.

Doutor, faça você também esse exercício. Por hora, seus pais são seu Deus. Você não pode conhecer Deus. Ele está muito longe. Não há lugar para Ele em você. Seus pais são Deus, eles são o futuro lugar para Deus em você. Você deve a eles tudo, a vida, todas as coisas. Trabalhe primeiro com ele, depois haverão outros exercícios.


Pergunta: Tenho feito o trabalho que você deu para nós. Realmente eu amo muito meus pais e descobri uma qualidade de emoção muito especial, durante um segundo talvez, uma partícula do amor real, também um grande sofrimento, um sofrimento real por meus pecados em relação a eles. De remorso. As duas emoções estavam lá ao mesmo tempo, um sofrimento muito vívido e uma felicidade trazida pelo sentimento de amor. Foi o remorso que trouxe a felicidade, pois depois que ele desapareceu, a felicidade também desapareceu. Algumas vezes, quando estou atendendo meus pacientes tenho descoberto em mim mesmo, por um segundo, emoções de amor da mesma qualidade. E naquele momento eu pude aliviar os sofrimentos físicos e trazer a eles um sentimento de felicidade. Há uma conexão?


Gurdjieff: O amor real é a base de tudo, a fundação, a Fonte. As religiões perverteram e deformaram o amor. Era através do amor que Jesus fazia milagres. Amor real junto com magnetismo. Todas as vibrações acumuladas criam uma corrente. Essa corrente traz a força do amor. O amor real é uma força cósmica que passa por nós. Se a cristalizarmos, ela se torna um poder – o maior poder no mundo. Mais para frente você estudará magnetismo em livros, não importa quais, isso irá lhe dar material. E com o amor como base, você vai poder curar paralíticos e fazer os cegos verem.


Pergunta: Tenho me surpreendido pela precisão das sensações observadas por um longo período, tão intensas, tão vívidas, com todas as impressões que eu tinha em mim e que voltaram.


Gurdjieff: Isso é normal. Nossos centros registram tudo, desde a hora do nosso nascimento. Se eu lhe colocar num sono hipnótico, você pode me contar o que aconteceu na primeira semana após o seu nascimento. Tudo está escrito, tudo está lá. Um sujeito colocado para dormir por mim, me disse a pulsação da pessoa que estava ao lado dele no momento em que fiz ele reviver. Tudo está escrito, como numa fotografia, mas mil vezes mais sensível. É por isso que você deve ter cuidado com o que é inscrito. Escolha isso. (Belzebu: “Observe a pureza dos seus rolos”)




Pergunta: Este trabalho traz algo para meus pais? Ele toca meus pais, dá algo a eles?


Grudjieff: Você deve fazer isso por você mesmo, para reparar. Ter remorso. Faça com que o seu remorso fique o mais forte possível. É esse remorso que conta; é o sofrimento que importa; sofrimento voluntário que paga pelo passado, que repara os erros.


Pergunta: Descobri a mesma qualidade de emoções das quais nós falamos, mas ela me dá tamanha plenitude interior, uma tamanha sensação de felicidade que eu não sinto mais remorso; eu reluto em ter essa felicidade, pois veio sem ser merecida.


Gurdjieff: Você tem imaginação e fantasia. Sempre disse isso. Você é um representante da arte. Um tolo. Não tem peso. É leve. Filosofia, imaginação. Um estado é um resultado. É isso que dá peso. Esse é o contrapeso da felicidade real que segue passo a passo com isso; ao mesmo tempo para que possa ser genuíno, não se deve ter um sem o outro. Sua natureza tem uma tendência (o resultado da inércia); você se permite ir na direção dessa tendência de ter estados extraordinários sem uma base real, sem peso. Você deve eliminar isso, mandar embora. Assim que um estado de satisfação surgir, faça “tchik”. Esmague-o, elimine-o. Trabalhe sobre remorso, lembre de si, reavive as cenas em que você foi um mau filho, quando você fez seus pais chorarem, talvez. Sinta novamente em todos os detalhes, encontre seus erros novamente. Busque no seu passado. Sofra. Nesse sofrimento você pode obter felicidade real dada pelo amor real.


Existem duas coisas diferentes sob leis diferentes: (1) o corpo orgânico; (2) o corpo psíquico. O corpo orgânico obedece suas leis. Ele apenas deseja satisfazer suas necessidades – comer, dormir, fazer sexo. Ele não conhece nada mais. Ele não quer mais nada. É um verdadeiro animal. Devemos senti-lo como um animal. Devemos senti-lo como um estranho. Devemos subjugá-lo, treiná-lo e fazê-lo obedecer, em vez de obedecê-lo.


O corpo psíquico sabe algo diferente do que o corpo orgânico. Ele tem outras necessidades, outras aspirações, outros desejos. Ele pertence a um mundo diferente, ele é de uma natureza diferente. Há um conflito entre esses dois corpos – um deseja, o outro não. É uma luta que devemos reforçar voluntariamente, através do nosso trabalho, através da nossa vontade. Essa luta que existe naturalmente é o estado específico do homem, o que devemos usar para criar uma terceira coisa, um terceiro estado diferente dos outros dois: o Mestre, e que está unido a algo mais.


A tarefa é, portanto, algo preciso que reforça essa luta, pois através da luta, e apenas através da luta, pode uma nova possibilidade de ser nascer. Por exemplo, meu organismo tem o hábito de fumar. Essa é uma necessidade dele. Eu não quero fumar – eu elimino esse hábito. A necessidade está sempre lá mas eu recuso satisfazê-la. Há uma luta, uma voluntária luta consciente que chama a terceira força. É a terceira força que será o fator - “eu” - que irá conciliar e criar o equilíbrio.


O corpo é um animal. A psique é uma criança. Devemos educar os dois. Pegue o corpo, faça-o entender que ele deve obedecer e não comandar. Ponha cada um em seu lugar. Devemos conhecer a nós mesmos. Devemos ver o que acontece. Assuma uma tarefa que esteja dentro da sua possibilidade, bem pequena para começar. Em relação a comer, por exemplo. Relacionada a um hábito. Cada um conhece a si mesmo e pode encontrar uma tarefa, é uma coisa interior da pessoa. Uma vontade que seja oposta a uma necessidade e crie luta. A única possibilidade de criar um segundo corpo é através do acúmulo de uma substância diferente. A única meta é que tudo deve servir a essa meta.


Pergunta: Eu entendi totalmente durante a semana tudo o que você me falou a semana passada sobre o corpo físico e o corpo psíquico e trabalhei nessa direção; eu lutei. Uma noite estava dormindo, e fui acordado por meu filho – tenho um filho de quatro anos - que tinha sido picado por mosquitos e que estava com dor e começou a chorar e chamar por mim. Ele estava chorando e sofrendo. Eu fui até ele e porque ele estava chorando e sofrendo, antes mesmo que eu tivesse tempo de me ver, eu bati nele. Eu não me permiti ir dormir novamente. Como posso subjugar essa violência em mim mesmo? Vi o que meu corpo é, do que ele é capaz e suas reações após uma semana de trabalho sobre ele.


Gurdjieff: Existem forças ao seu redor, estranhas a você. É possível que quando um homem realmente trabalha, realmente deseja lutar, elas produzam um evento como esse. Elas podem até mesmo criar os mosquitos. De qualquer forma, se foi isso ou se foi o acaso, nada poderia ter sido melhor. Ali você sentiu, você entendeu, não com a sua cabeça apenas. Eu estou muito contente e peço que a partir de agora você tome nota de tudo o que acontece no seu trabalho por uma semana, duas semana, três semanas e você irá falar sobre isso aqui, pois isso vai ser útil para os seus companheiros. E não esqueça que agora seu filho é seu mestre. Agradeça-o. Por mim, ele é meu amigo. Eu responsabilizo você com uma comissão para ele; cinco doces por dia durante um ano.



*Referência ao livro '"Relatos de Belzebu a seu neto”

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Meher Baba - A Remoção dos Sanskaras (parte 1)


O Cessar, o desgaste e o desenrolamento dos Sanskaras

Os seres humanos não têm iluminação de Si mesmos porque sua consciência está apoiada nos Sanskaras, ou nas impressões acumuladas de experiências passadas. Na forma humana a vontade-de-ser-consciente (lahar-o impulso do absoluto de conhecer a si mesmo) com a qual a evolução começou, teve sucesso em criar consciência. Entretanto, a consciência não chega ao conhecimento da Sobre-alma (Paramatma), porque a alma individual (atman) está impelida a usá-la para experimentar os Sanskaras em vez de utilizá-la para experimentar a própria natureza da alma como a Sobre-alma. A experiência dos Sanskaras mantém-na confinada à ilusão de ser um corpo finito tentando se ajustar ao mundo das coisas e das pessoas. As almas individuais são como gotas no oceano. Assim como cada gota no oceano é fundamentalmente idêntica ao oceano, a alma (que é individualizada devido à ilusão, ou bhas) ainda é a Sobre-alma e realmente não se separa da Sobre-alma. Todavia, o invólucro dos Sanskaras, pelo qual a consciência está coberta, impede a gota-alma de ter a iluminação de Si mesma e mantém-na dentro do domínio da dualidade.
Para que a alma conscientemente realize sua identidade com a Sobre-alma, seria necessário que a consciência fosse retida e que os Sanskaras fossem inteiramente removidos.
Os Sanskaras, que contribuem na evolução da consciência, tornam-se impedimentos à sua eficácia em iluminar a natureza da Sobre-alma. Daqui por diante o problema com o qual a vontade-de-ser-consciente é confrontada não é o de evoluir a consciência, mas sim o de liberá-la dos Sanskaras.

A liberação dos Sanskaras acontece das cinco maneiras seguintes:

1. Cessar a criação de novos Sanskaras.
Isso consiste em colocar um fim à atividade sempre renovadora de criar novos Sanskaras. Se a formação dos Sanskaras for comparada ao enrolamento de uma corda em volta de um bastão, este passo atinge a cessação do enrolamento da corda.

2. O desgaste dos velhos Sanskaras.
Se os Sanskaras são impedidos de expressarem a si mesmos em ação e em experiência, eles são gradualmente desgastados. Na analogia da corda, este processo é comparável ao desgaste da corda no lugar em que ela está.

3. O desenrolamento dos Sanskaras passados.
Este processo consiste em anular Sanskaras passados ao reverter mentalmente o processo que leva à sua formação. Continuando nossa analogia, é como desenrolar a corda.

4. A dispersão e exaustão de alguns Sanskaras.
Se a energia mental que estiver encerrada nos Sanskaras for sublimada e desviada para outros canais, eles serão dispersados e exauridos e tenderão a desaparecer.

5. O apagamento dos Sanskaras.
Isso consiste em aniquilar completamente os Sanskaras. Na analogia da corda, é comparável a cortar a corda com uma tesoura. O apagamento final dos Sanskaras pode ser efetuado apenas pela graça de um Mestre Perfeito.

Deve-se notar cuidadosamente que muitos dos métodos concretos para desfazer os Sanskaras mostram-se efetivos em mais de uma maneira e as cinco maneiras mencionadas acima não visam classificar esses métodos em tipos precisamente distintos, mas sim, representam os princípios diferentes de caracterizar os processos espirituais que acontecem enquanto os Sanskaras estão sendo removidos.
Por melhor convir, esta parte irá lidar apenas com aqueles métodos que de forma preeminente ilustram os primeiros três princípios (particularmente, a cessação da criação de novos Sanskaras e o desgaste e o desenrolamento de Sanskaras passados). Os métodos que ilustram predominantemente os dois últimos princípios (a dispersão e a exaustão através da sublimação dos Sanskaras e do apagamento dos Sanskaras) serão explicados nas Partes II e III.

Para a mente ser libertada das amarras dos Sanskaras que estão sempre sendo acumulados, é necessário que haja um fim na criação de novos Sanskaras.
As novas multiplicações de Sanskaras podem ser cessadas através da renúncia. Renúncia pode ser externa ou interna. A renúncia externa, ou física, consiste em abandonar tudo aquilo que a mente é apegada - casa, parentes, casamento, filhos, amigos, riqueza, confortos e prazeres grosseiros. A renúncia interna, ou mental, consiste em abandonar todos os desejos ardentes, particularmente o desejo por objetos sensuais. Embora a renúncia externa em si mesma não seja necessariamente acompanhada pela renúncia interna, ela frequentemente prepara o caminho para a renúncia interna.
A liberdade espiritual consiste na renúncia interna e não na renúncia externa, mas a renúncia externa é uma grande ajuda para alcançar a renúncia interna. A pessoa que renuncia suas posses desconecta-se de tudo que ela possuiu ou possui. Isso significa que as coisas que ela renuncia não são mais uma fonte de novos Sanskaras. Ela então dá um importante passo na direção de emancipar-se de seus Sanskaras ao colocar um fim no processo de formar novos Sanskaras.
Isso não é tudo que é alcançado através da renúncia externa. Com a renúncia de todas as coisas, ela também renuncia suas ligações passadas. Os velhos Sanskaras conectados com suas posses desapegam-se de sua mente e uma vez que são impedidos de expressarem a si mesmos, eles são desgastados. Para a maioria das pessoas, renúncia externa cria uma atmosfera favorável para o desgaste dos Sanskaras.
Um indivíduo que possua riqueza e poder está exposto a uma vida de indulgência e extravagância. Suas circunstâncias são mais favoráveis para as tentações. O homem é principalmente o que ele se torna ao ser talhado, cinzelado e esculpido pelo escultor do ambiente. Se ele pode ou não sobrepujar seu ambiente, depende da sua força de caráter. Se ele é forte, ele permanece livre em seu pensamento e ação, mesmo no meio da ação e reação com seu meio. Se ele é fraco, ele sucumbe a estas influências. Mesmo se ele é forte, ele está sujeito a seus pés serem varridos por uma poderosa onda do modo coletivo de vida e de pensamento. É difícil resistir às investidas de uma corrente de idéias e evitar virar presa das circunstâncias. Se ele resiste às circunstâncias, ele está sujeito a ser levado embora por alguma onda selvagem da paixão coletiva e ser pego pelos moldes de pensamento que ele não consegue renunciar. Embora seja difícil resistir e superar essas influências e arredores, é mais fácil escapar delas. Muitas pessoas viveriam uma vida casta e honesta se não fossem circundadas por luxúrias e tentações. A renúncia de todas as coisas supérfluas ajuda a exaurir os Sanskaras e é, portanto, contribuinte para a vida de liberdade.

As duas formas importantes de renúncia externa que têm valor espiritual especial são a solidão e o jejum. O afastar-se da tempestade e do esforço das múltiplas atividades mundanas e um ocasional retiro em solidão são valiosos para gastar os Sanskaras conectados com o instinto gregário. Mas isso não deve ser visto como um objetivo em si.
Assim como a solidão, jejuar tem igualmente grande valor espiritual. Comer é satisfação; jejuar é negação. Jejuar é físico quando o alimento não é consumido, apesar da ânsia pela apreciação de comer; e é mental quando o alimento é consumido não para seus prazeres e apegos, mas meramente para a sobrevivência do corpo. O jejum externo consiste em evitar o contato direto com o alimento a fim de conseguir o jejum mental.
A comida é uma necessidade direta da vida e sua negação continuada está fadada a ser desastrosa à saúde. Portanto, o jejum externo deve ser periódico e somente por um curto período de tempo. Tem de ser continuado até que haja uma vitória completa sobre o anseio pelo alimento. Trazendo em ação as forças vitais para suportar o anseio pela comida, é possível livrar a mente do apego à comida.
O jejum externo não tem nenhum valor espiritual quando é empreendido com a intenção de assegurar a saúde do corpo ou para a auto-afirmação. Não deveria ser usado como um instrumento para a auto-afirmação. Da mesma maneira, não deve ser levado ao extremo - a auto-mortificação proveniente do jejum prolongado não promove necessariamente a liberdade do anseio pela comida. Ao contrário, é passível de convidar uma reação subsequente a uma vida de extravagante indulgência na comida.
Se, entretanto, o jejum externo for empreendido com moderação e para finalidades espirituais, ele facilita a realização do jejum interno. Quando o jejum externo e interno são sinceros e fiéis, causam o desenrolamento dos Sanskaras conectados com o anseio por comida.

O desenrolamento de muitos outros Sanskaras pode ser provocado através de penitências. Isto consiste em aumentar e expressar o sentimento de remorso que um indivíduo sente após ter percebido que fez algum ato errôneo.
O arrependimento consiste em reavivar mentalmente os erros com severa auto-condenação. É facilitado ao aproveitar-se das diferentes circunstâncias e situações que a penitência incita, ou ao permanecer vulnerável durante períodos de irrupções emocionais, ou por esforços deliberados para recordar os incidentes passados com um coração imbuído de remorso e uma desaprovação aguda. Tal penitência desgasta os Sanskaras que são responsáveis pelas ações.
A auto-condenação acompanhada de um sentimento profundo pode negar os Sanskaras de raiva, avidez e luxúria.
Suponha que uma pessoa tenha cometido um erro irreparável a alguém por meio da avidez, da raiva, ou da luxúria descontroladas. Uma hora ou outra ela estará fadada a ter a reação de um remorso auto-mortificante e experimentar os ferrões da consciência. Se nessa hora ela percebe vividamente o mal pelo qual ela foi responsável, a intensidade de ciência emocional pela qual ela é acompanhada consome as tendências pelas quais ela fica auto-condenada. A auto-condenação algumas vezes expressa-se através de diferentes formas de auto-mortificação. Alguns aspirantes até mesmo fazem feridas em seus corpos quando estão dispostos a cumprir penitência, mas tal expressão drástica de remorso deve ser desencorajada como um uso geral.
Alguns aspirantes Hindus tentam cultivar humildade ao tornar uma regra cair aos pés de todos a quem encontram.
Para aqueles de vontade forte e caráter estável, a penitência pode trazer o efeito desejado pela auto-humilhação, que desenrola e erradica os diferentes Sanskaras conectados com as ações boas e más. Outras pessoas que são fracas na sua força de vontade também derivam benefícios da penitência se estiverem sobre uma direção solidária e amorosa.
Quando a penitência é nutrida cuidadosamente e praticada, ela inevitavelmente resulta na revogação mental das indesejáveis formas de conduta e pensamento, e torna a pessoa sujeita a uma vida de pureza e serviço.
Deve-se, entretanto, notar cuidadosamente que há sempre o perigo na penitência que a mente possa ficar muito tempo voltada para os males feitos e assim desenvolver o hábito mórbido de choramingar e lamentar por coisas insignificantes. Tal extravagância sentimental é frequentemente uma perda indiscriminada de energia e de maneira nenhuma é de ajuda no desgaste e desenrolar dos Sanskaras.
A penitência não deveria ser como o arrependimento diário que acompanha as fraquezas diárias. Não deveria tornar-se um habito tedioso e estéril de imoderada e obscura ponderação sobre suas falhas. A penitência sincera não consiste em perpetuar o pesar por causa dos erros, mas em resolver evitar no futuro aqueles atos que trazem remorso. Se levar à falta de auto-respeito ou de auto-confiança ela não serviu seu propósito, que é meramente tornar impossível a repetição de certos tipos de ação.

O desgaste e desenrolamento dos Sanskaras podem ser também efetuados ao negarmos os desejos e suas expressões e satisfações. As pessoas diferem na sua capacidade e aptidão de rejeitar os desejos. Aquelas nas quais os desejos surgem com grande velocidade impulsiva, ficam inaptas a refreá-los em sua origem, mas podem refrearem-se de buscar a satisfação deles através de ações.
Mesmo se a pessoa não tem controle sobre o surgimento dos desejos, pode preveni-los de serem traduzidos para ação. A rejeição dos desejos ao controlar as ações evita a possibilidade de plantar sementes de futuros desejos. Por outro lado, se uma pessoa traduz seus desejos em ação, ela pode desgastar e desenrolar algumas impressões. Mas ela está criando novas impressões durante o próprio processo de satisfazer os desejos e está assim semeando sementes para desejos futuros, que por sua vez estão fadados a demandar sua própria satisfação.
O processo de desgastar e desenrolar as impressões pela expressão e satisfação em si não contribue para assegurar a liberação dos Sanskaras. Quando os desejos surgem e sua liberação em ação é barrada, existe abundante oportunidade para cogitação espontânea sobre esses desejos. Essa reflexão resulta na exaustão dos Sanskaras correspondentes. Deve ser notado, entretanto, que tal reflexão espontânea não traz os resultados desejados se toma a forma de indulgência mental nos desejos.
Quando há uma tentativa deliberada e dissoluta de receber e abrigar os desejos na mente, tal reflexão não apenas não terá valor espiritual como pode ser responsável por criar Sanskaras sutis. A reflexão não deveria ser acompanhada por nenhuma sanção consciente para os desejos que surjam na consciência, e não deveria haver nenhum esforço para perpetuar a memória desses desejos. Quando os desejos são negados de se expressarem e satisfazerem-se e são permitidos passarem pela intensidade do fogo de uma consciência reflexiva que não os sanciona, as sementes desses desejos são consumidas. A rejeição dos desejos e a inibição da resposta física efetuam, com o tempo, uma negação automática e natural dos Sanskaras.
A rejeição dos desejos é uma preparação para o estado de ausência dos desejos, ou o estado do não querer, que unicamente pode trazer a liberdade real. As vontades são necessariamente um fator limitador, sejam elas satisfeitas e atendidas ou não. Quando são satisfeitas, levam a vontades subsequentes e assim perpetuam a prisão do espírito. Quando as vontades não são satisfeitas, levam ao desapontamento e sofrimento, que - através de seus Sanskaras - acorrenta a liberdade do espírito à sua própria maneira.
Não há fim para as vontades porque os estímulos externos e internos da mente estão constantemente atraindo-a para um estado de ter vontade de algo ou de desgostar (que é uma outra forma de vontade) de algo.
Os estímulos externos são as sensações da visão, audição, olfato, paladar e tato. Os estímulos internos são aqueles que surgem na mente do homem das memórias desta vida presente e da totalidade de Sanskaras agrupados pela consciência durante o período evolucionário e durante as vidas como ser humano.
Quando a mente é treinada a permanecer imóvel e equilibrada na presença de todos os estímulos externos e internos, ela chega ao estado do não-querer. E ao não querer nada (exceto a Realidade absoluta, que está além dos opostos dos estímulos) é possível desenrolar os Sanskaras das vontades. Ter desejos é um estado de equilíbrio perturbado da mente, e o não-querer é um estado de equilíbrio estável.

O equilíbrio do não-querer só pode ser mantido através de um incessante desapego de todos os estímulos, sejam eles prazerosos ou dolorosos, agradáveis ou desagradáveis.
Para poder permanecer imobilizada pelas alegrias e tristezas deste mundo, a mente deve estar completamente desapegada dos estímulos externos e internos. Embora a mente esteja constantemente fortificando-se através de suas próprias reflexões construtivas, há sempre a chance dessas produções de defesa serem apagadas por uma repentina onda inesperada surgindo no oceano do entorno natural e mental. Quando isso acontece você pode, por um tempo, sentir-se completamente perdido, mas a atitude de não-apego pode mantê-lo a salvo. Essa atitude consiste na aplicação do princípio do neti-neti (não-isto, não-aquilo). Ela implica um constante esforço para manter um desapego zeloso em relação às seduções dos opostos da experiência limitada.
Não é possível negar apenas os estímulos desagradáveis e permanecer internamente apegado aos estímulos agradáveis. Para a mente não ser afetada pelas investidas dos opostos, ela não pode continuar apegada às expressões dos estímulos agradáveis e ser influenciada por eles. O equilíbrio consiste em encarar ambas as alternativas com completo desapego.
A idéia “Sim, sim” dos Sanskaras positivos pode somente ser anulada com a defesa negativa “não, não”. Esse elemento negativo está necessariamente presente em todos os aspectos do ascetismo, quando expressado através da renúncia, solidão, jejum, penitência, de impedir a satisfação dos desejos e do não-querer. A mistura feliz de todos esses métodos e atitudes cria uma forma saudável de ascetismo em que não há nenhuma labuta ou esforço. Mas para assegurar tudo isso, o elemento negativo neles deve vir naturalmente sem causar nenhuma perversão ou limitações futuras. Tentar forçar a mente a uma vida de ascetismo não tem utilidade. Todo o ajuste forçoso da vida em linhas ascéticas é provável de atrofiar o crescimento de certas boas qualidades. Quando as qualidades saudáveis da natureza humana são permitidas de desenvolverem-se natural e lentamente, elas abrem o conhecimento de valores relativos e, desse modo, pavimentam o caminho para uma vida espontânea de ascetismo. Enquanto que toda a tentativa de forçar ou acelerar a mente para uma vida ascética é passível de atrair reação.

O processo de ser libertado de alguns apegos é frequentemente acompanhado pelo processo de formar alguns outros novos apegos.
A forma mais grosseira de apego é aquela que é dirigida ao mundo dos objetos; mas quando a mente está sendo desapegada do mundo dos objetos, ela tem uma tendência de chegar em alguns apegos mais finos de um tipo subjetivo. Depois que a mente sucedeu em cultivar um determinado grau de desapego, ela pode facilmente desenvolver aquela forma sutil de egoísmo que se expressa através de uma distância e de um ar superior. O desapego não deve receber permissão de formar nenhum núcleo sob o qual o ego possa se ligar; e ao mesmo tempo, não deve ser uma expressão de sua inabilidade de lidar com as tempestades e o estresse da vida mundana.
As coisas que limitam o Ser puro e infinito deveriam ser abandonadas através de uma atitude de imensa força, que é nascida da pureza e da iluminação, e não de um sentido de desamparo face aos conflitos e esforços. Ademais, o desapego verdadeiro não consiste em apegar-se à mera fórmula do neti neti, que se transforma às vezes numa obsessão da mente sem nenhum sentimento profundo de anseio pela iluminação.
Tal interesse em uma mera fórmula de negação frequentemente existe lado a lado com uma permanência interna nas tentações. O desapego pode ser integral e sincero somente quando se transforma em uma parte inseparável da natureza da pessoa.
A afirmação negativa do “não, não” é a única maneira de desenrolar os Sanskaras positivos reunidos durante a evolução e as vidas na forma humana. Embora este processo destrua os Sanskaras positivos, conduz à formação dos Sanskaras negativos, que de suas próprias maneiras condicionam a mente e criam um novo problema. A afirmação do “não, não” tem de ser suficientemente poderosa para efetuar a erradicação de todos os Sanskaras físicos, sutis e mentais; mas depois que tenha servido seu propósito, tem de finalmente ser abandonada. A finalidade da experiência espiritual não consiste na simples negação. Trazê-la para uma fórmula negativa é limitá-la por meio de um conceito intelectual. A fórmula negativa tem de ser usada pela mente para descondicionar a si mesma e deve ser renunciada antes que o objetivo último da vida possa ser alcançado. O pensamento tem de ser usado a fim de superar as limitações impostas por seu próprio movimento; mas quando isso é feito, ele próprio tem de ser abandonado. Isso se eleva ao processo de ir além da mente e torna-se possível com a não-identificação com a mente ou seus desejos. Olhar objetivamente para o corpo, bem como para todos os pensamentos e impulsos mais baixos, é estabelecer-se num desapego feliz e negar todos os Sanskaras. Isso significa libertar a alma de suas ilusões auto-impostas - como “eu sou o corpo,” “eu sou a mente,” ou “eu sou desejo” - e ganhar terreno na direção do estágio iluminado do “eu sou Deus” (“Anal Haqq,” ou “AhamBrahmasmi").

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Philokalia - Nikitas Stithatos - Sobre o Conhecimento Espiritual (parte 2)

Ainda antes da criação de todas as coisas a partir do nada, o Criador possuía em Si mesmo o conhecimento, os princípios intrínsecos e as essências de tudo aquilo que Ele trouxe à existência, pois Ele é soberano sobre as eras e tem presciência de todas elas. De maneira correspondente, quando à Sua própria imagem Ele moldou o homem como o soberano da criação, Ele dotou-lhe com o conhecimento, os princípios intrínsecos e as essências de todas as coisas criadas. Dessa forma, através de sua criação o homem possui as qualidades secas e frias dos fluídos gástricos vindas da terra, as qualidades quentes e úmidas do sangue vindas do ar e do fogo, as qualidade úmidas e frias da fleuma vindas da água, o poder de crescimento das plantas, o poder de nutrição dos zoófitos, seu aspecto passivo proveniente dos animais, seu aspecto espiritual e místico preveniente dos anjos e, finalmente, para poder existir e viver, sua respiração imaterial – sua alma incorpórea e imortal, entendida como intelecto, consciência e o poder do Espírito Santo – vinda de Deus.

Deus criou-nos à Sua imagem e semelhança (Gen.1,26). Nós somos Sua semelhança se possuímos virtude e compreensão, pois 'Sua virtude cobre os céus e a terra está cheia de Sua compreensão' (Hab. 3,3). A virtude de Deus é Sua justiça, Sua santidade e verdade: como diz Davi: 'Tu és justo, Ó Senhor, e Tua verdade está ao redor de Ti' (Sal. 89,8), e novamente: 'O Senhor é justo e sagrado' (Sal.145,17). Nós também estamos na semelhança de Deus se possuirmos retidão e bondade, pois 'bom e direito é o Senhor' (Sal. 25,8); ou se estivermos conscientes da sabedoria e do conhecimento espiritual, pois esses estão dentro Dele e Ele é chamado de Sabedoria e de Logos; ou se possuirmos santidade e perfeição, uma vez que Ele mesmo disse: 'Deveis ser perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito' (Mat. 5,48), e: 'Deveis tornar-vos santos, pois eu sou santo' (Lev.11,44); ou se formos gentis e humildes no coração, pois está escrito: 'Aprendei de mim, pois sou gentil e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas' (Mat.11,29).

Uma vez que nosso intelecto é uma imagem de Deus, ele é verdadeiro consigo mesmo quando permanece entre as coisas que são propriamente dele mesmo e não divaga de sua própria dignidade e natureza. Sendo que ele ama permanecer dentre as coisas próximas a Deus e busca unir-se a Ele, no Qual ele tem sua origem, por Quem ele é ativado e na direção do Qual ele ascende por meio de suas capacidades naturais, desejando imitá-Lo em Sua compaixão e simplicidade.

Aquele que adere dedicadamente àquelas atividades do intelecto que estão de acordo com sua natureza e afirma a dignidade da inteligência, é mantido imaculado pelas preocupações materiais, está envolvido com a gentileza, a humildade, amor e compaixão e é iluminado pelo Espírito Santo. Sua atenção está focada nas esferas superiores da atividade contemplativa, ele é iniciado nos mistérios ocultos de Deus, através de suas palavras de sabedoria ele amorosamente ensina àqueles que são capazes de aprender a respeito dessas coisas. Dessa forma ele não usa seu talento apenas para seu próprio benefício, mas também compartilha sua bênção com seus companheiros.

Exalte o Um sobre a dualidade – o singular sobre o dual – e liberte a nobreza dele de todo o comércio com o dualismo e você irá imaterialmente consorciar-se com espíritos imateriais, pois você próprio terá se tornado um espírito místico, mesmo que pareça viver fisicamente entre os outros homens.

Uma vez que você houver trazido a limitação da dualidade para a subordinação da dignidade e natureza do Um, você terá subordinado toda a criação a Deus, pois terá trazido para a unidade o que estava dividido e terá reconciliado todas as coisas.

Enquanto a natureza dos poderes dentro de nós está num estado de discórdia interior e dispersa entre muitas coisas contrárias, nós não participamos dos dons supranaturais de Deus. E se nós não participarmos nesses dons, também estaremos longe da eucaristia mística do santuário celeste, celebrada pelo intelecto através de sua atividade espiritual. Quando através de assíduos labores ascéticos tivermos expurgado a nós mesmos da crueldade do mal e tivermos reconciliado nossa discórdia interior através do poder do Espírito, desse modo participaremos das inefáveis bênçãos de Deus e dignamente concelebraremos os mistérios divinos da eucaristia mística do intelecto cm Deus, o Logos e Seu santuário espiritual e supra-celestial, pois tornamo-nos iniciados e eclesiásticos de Seus mistérios imortais.

Nosso ser caído deseja de uma maneira que opõe nosso ser espiritual e nosso ser espiritual deseja de uma maneira que opõe nosso ser caído; e nessa batalha implacável entre os dois cada um almeja pela vitória e pelo controle sobre o outro. Essa contrariedade dentro de nós também é chamada de 'discórdia', 'ponto de inflexão', 'equilíbrio' e 'luta dupla'; e se o intelecto pende a balança para um ato da paixão humana a alma é dividida.

Enquanto formos assolados pela perturbação dos nossos pensamentos e enquanto formos governados e aprisionados por nosso ser caído, seremos auto-fragmentados e cortados da Mónada* divina, uma vez que não tornamos nossa as riquezas de sua unidade. Mas quando nossa mortalidade for engolida pelo poder unificador da Mónada e adquirirmos um desapego supranatural, quando o intelecto tornar-se mestre de si mesmo, iluminado por suas intelecções engendradoras de sabedoria, então a alma, num abraço sagrado com o Um, será libertada da discórdia tornando-se uma unidade: envolvida na Mónada divina, ela é unificada numa simplicidade sublime. Assim é a natureza da restauração da alma a seu estado original e assim é nossa renovação num estado ainda mais exaltado.

Simples e unificada, a presença da luz divina reúne dentro de si mesma as almas que participam dela convertendo-as em si mesma, unindo-as com sua própria unidade e aperfeiçoando-as com sua própria perfeição. Leva-as a descobrir as profundezas de Deus, de modo que elas contemplem os grandes mistérios e tornem-se iniciadas e guias dos mistérios religiosos. Aspire, portanto, ficar completamente purificado através de labor ascético e você verá esses mistérios estimados por Deus – dos quais eu falei- de fato operando dentro de você.

Os raios da Luz Primordial que iluminam as almas purificadas com o conhecimento espiritual não apenas preenchem-nas de bênção e luminosidade, eles também, por meio da contemplação das essências internas das coisas criadas, conduzem-nas para os céus místicos. Os efeitos da energia divina, entretanto, não páram aqui; eles continuam através da sabedoria e através do conhecimento das coisas indescritíveis até que unam as almas purificadas com o Um, tirando-as do estado de multiplicidade para o estado de unidade Nele.

*União perfeita do espírito e da matéria constitutiva de Deus

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Kabir - Cinco Poemas


O Todo Secreto está dentro de nós;

os planetas em todas as galáxias

passam pelas mãos dele como pérolas.

Esse é um colar de pérolas que deveríamos olhar

com olhos luminosos.

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O que sai da harpa? Música!

E há uma dança onde nenhum pé ou mão dançam.

Nenhum dedo a toca, nenhum ouvido a escuta,

pois o Todo Sagrado é o ouvido

e quem está escutando também.


As grandes portas permanecem fechadas, mas a fragrância

da primavera vem para dentro mesmo assim,

e ninguém vê o que acontece lá.

Homens e mulheres que entraram por ambas

as portas de uma só vez entenderão este poema.
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Estive pensando a respeito da diferença entre a água

e as ondas nela. Ao se erguer,

a água continua sendo água, ao arrebentar,

ela é água, você vai me dar uma dica


de como distingui-las?


Porque alguém criou a palavra

“onda”, tenho de distingui-la

da água?

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Não saia de casa para ver flores.

Meu amigo, não se preocupe com aquela excursão.

Dentro do seu corpo existem flores.

Uma flor tem mil pétalas.

Ela irá prover um lugar para sentar.

Sentando ali você terá um lampejo da beleza

dentro do corpo e fora dele,

diante de jardins e depois deles.

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Respire naquela palavra da qual toda a Via-Láctea surgiu!

Aquela palavra é o seu Professor; eu escuto aquele som e sou

seu discípulo.

Quantos que absorveram o seu significado estão vivos?

Escute, estudante, segure-se a essa

palavra! Faça isso!

Todos os textos antigos e poemas sagrados falam sobre ela.

O mundo tem suas raízes profundas nessa palavra.

Os Rishas e os devotos balbuciam sobre ela,

mas ninguém compreende o quão misteriosa a palavra é!

O Pai levanta-se da ceia e sai para a rua quando a escuta.

O asceta retorna ao amor quando a escuta.

Os Seis Grandes Sistemas mantêm-na completamente fixa.

O animal da renunciação dirige-se a essa palavra.

O mundo com todos os seus elefantes e micróbios brotou dessa palavra.

Dentro da palavra tudo é cheio de luz.


Kabir diz: Verdade. Mas quem sabe de onde a palavra

surgiu em primeiro lugar?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ramesh S. Balsekar - A Consciência é tudo o que existe


Ramesh: No que diz respeito ao “Eu Sou”, não faz diferença se há a manifestação ou não. A manifestação veio do Eu Sou. O funcionamento da manifestação está no Eu Sou. É como o reflexo num espelho. Então o que você aceita, é que o que quer que aconteça é meramente um reflexo no Eu Sou. Toda a manifestação é um reflexo na Fonte – de outro modo, haveriam dois.

Peter: Portanto, não pode ser um reflexo da fonte, é um reflexo na Fonte?

Ramesh: Apenas pode ser na Fonte. Tudo isto é um reflexo na Fonte porque a Fonte é tudo que existe. Portanto, para qualquer coisa que aconteça, você escolhe um conceito. Você não pode ficar sem conceitos, senão você teria de ficar em silêncio. E se a questão “Quem sou eu?” surge, de todos esse é o primeiro pensamento que precisa de uma resposta. A resposta é um conceito, um conceito sendo algo que aponta para a Verdade. O valor ou a utilidade de um conceito está apenas no quanto ele aponta para a Verdade. Você vê? E esse conceito – que a totalidade da manifestação e o funcionamento desta manifestação é um reflexo na Fonte – é um apontador para a Verdade, a qual é a Fonte.


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“Assim como a superfície de um espelho existe dentro e fora da imagem refletida no espelho, também o Ser supremo existe tanto dentro quanto fora do corpo físico.” (Ashtavakra)


Ramesh: Nesse verso importante, Ashtavakra aponta que o que nós somos como sujeitos definidamente não é uma coisa ou um objeto, que o pronome pessoal inevitavelmente sugere, mas mais um processo ou um pano de fundo, como a tela na qual um filme é visto. Na ausência de um pano de fundo não poderia haver nenhuma aparência de modo algum, embora no caso da manifestação fenomenal, o próprio “pano de fundo” - a Consciência – constitui a aparência e é responsável por ela. O ponto é que a menos que haja um total “afastamento” para a impessoalidade, a consideração “quem ou o que sou eu?” pode significar de fato uma transferência simples demais - do objeto para o sujeito (da fenomenalidade para a não-fenomelalidade / do manifesto para o não-manifesto). Isso não teria força suficiente para quebrar o condicionamento trazido pela noção de identidade que conduz à suposta limitação. É apenas um afastamento direto para a impessoalidade que é mais provável de trazer a alarmante transformação conhecida como metanoesis, onde há uma convicção repentina e imediata de que a identificação com uma entidade individual separada, na verdade, nunca existiu realmente e era essencialmente nada além de uma ilusão.


Talvez seja por essa razão que Ashtavakra sugere a analogia do espelho para a Consciência, a qual reflete tudo, não retém nada e em Si mesma não tem existência perceptível. Isto é, a Consciência é o pano de fundo do que parecemos ser como objetos (fenômenos), e ainda assim ela não é algo objetivo (um objeto). Da mesma forma que um reflexo no espelho é uma mera aparência sem nenhuma existência e o espelho é o que tem existência mas não é afetado de maneira nenhuma pelo que está refletido, assim também o aparato psicossomático (o organismo corpo-mente), sendo apenas uma aparência na Consciência, não tem existência independente. A Consciência na qual ele aparece não é afetada de forma alguma pela aparência dos objetos nela.



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Ramesh: A Fonte, que criou esta manifestação dentro de Si como um reflexo, está fazendo esta manifestação funcionar. Portanto, a manifestação e seu funcionamento, aos quais chamamos vida – são tudo um reflexo na Fonte.

Primeiro há a Fonte. A Fonte cria um reflexo. O reflexo é o Eu Sou. Agora, Ramana Maharshi diz que a Fonte é o “Eu-Eu”. Ele A nomeia de “Eu-Eu” meramente para distingui-la do Eu Sou. O “Eu-Eu” é a Energia latente (potencial). A Energia Potencial torna-se ativa na forma de manifestação como o Eu Sou, e torna-se ciente da manifestação. O Eu Sou é a Consciência (awareness) impessoal da manifestação e do seu funcionamento. Então, para o funcionamento da manifestação acontecer, a Fonte – ou Deus, ou o Eu Sou – cria estes organismos corpo-mente e por conseguinte “eu's” individuais, ao identificar a Si mesma com esses organismos corpo-mente. Portanto, a Energia Universal, a Energia Potencial, torna-se ativa nesta manifestação. O “Eu-Eu” ao sair do estado latente, torna-se o Eu Sou, e o Eu Sou torna-se o eu sou Markus. Por que o Eu Sou torna-se Markus? Porque sem o Markus e os outros bilhões de nomes, a vida como conhecemos não aconteceria.


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Então, a manifestação é real? Ela é real e irreal. A questão – a manifestação é real ou não? Está errada. A manifestação é tanto real quanto irreal: real na medida em que ela pode ser observada, irreal com base em que ela não tem existência independente própria dela mesma sem a Consciência. Desse modo, a única coisa que tem existência independente dela própria é a Realidade e essa Realidade é a Consciência. A Consciência é a única Realidade. Todo o resto é um reflexo dessa Realidade dentro de Si mesma.



Lance: Estou tendo problemas em entender o “Eu-Eu” e o Eu Sou.

Ramesh: Não existe problemas pois eles não são dois. Eles não são dois. A Consciência-em-repouso é o Eu-Eu. Quando ela está em movimento ela é o Eu Sou. Portanto, o Eu-Eu é um conceito que realmente não lhe interessa. É apenas um conceito. O que realmente lhe interessa é o Eu Sou.

Lance:O Eu sou é a totalidade da manifestação.

Ramesh: Correto.

Lance: Então quando estamos no estado de sono o que ele vira?

Ramesh: Eu Sou, pois há um corpo ali e ele está na fenomenalidade.

Lance: Portanto, quando não existe a manifestação há somente o Eu-Eu.

Ramesh: Sim.

Lance: Num livro sobre Ramana Maharshi é dito que quando investigamos a fundo 'Quem sou eu?”, encontramos o nada.

Ramesh: Está vendo, Ramana Maharshi, portanto, não distingue realmente entre o “Eu-Eu” e o “Eu sou” porque é inútil. O Eu-Eu é meramente um conceito a respeito do qual ele falou, por que se preocupar? O que interessa a você é o Eu Sou e o eu sou Lance. E quando o Lance não está aí, o Eu Sou está.

Lance: O que é o estado de sonhos então?

Ramesh: O estado de sono com sonhos é a Consciência-em-ação identificada. O que é o sonho da vida, então? O sonho da vida é o sonho do Eu Sou. O Lance tem um sonho pessoal e o Eu Sou tem o sonho vivo. Desse modo, o que acontece na verdade é que você acorda do seu sonho pessoal para o sonho vivo.

Lance: No sono profundo existe o Eu-Eu?

Ramesh: O Eu Sou! O Eu-Eu realmente não lhe interessa.

Lance: Mas agora sinto necessidade de saber.
Ramesh: Então de onde vem o Eu Sou? Essa é uma questão conceitual. E para essa pergunta conceitual a resposta conceitual é que o Eu Sou é a Energia impessoal tornada ativa na forma de manifestação e o Eu-Eu é a Energia Potencial (latente). O “eu” pessoal que o Lance pensa que é ele, é a Energia impessoal identificando-se como um ego que pensa que ele é o fazedor e que precisa saber. Quando verdadeiramente não há mais questões, então não há fazedor. Onde não há fazedor não há ego. E onde não há ego, aí o Eu Sou brilha a partir de um organismo corpo-mente sem identificação pessoal. Quando o organismo corpo-mente morre, o Eu Sou continua como Eu Sou. E quando a totalidade da manifestação chega a um fim, aí o Eu Sou é Eu-Eu, a Consciência-em-repouso. E tudo isso é um conceito.


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Peter: Você disse que o “eu” no Eu Sou não é o Ego. Mas o que é ele? Eu não entendi quando você disse o Eu-Eu.

Ramesh: Você vê, a Consciência não ciente de Si mesma, a Energia Potencial, é um conceito. Não cometa enganos! Eu-Eu, Eu Sou, eu sou Peter – a coisa toda é um conceito com o intuito de compreender a sua natureza real. Assim o Eu-Eu é a Energia Potencial antes da manifestação.

Peter: A manifestação de mim?

Ramesh: Não. A totalidade da manifestação.

Peter: Portanto, esse Eu é totalmente não individual?

Ramesh: Isso. Bem, na verdade, seja Eu-Eu, Eu Sou – eles não são dois. O Eu-Eu torna-se Eu Sou na manifestação. O Eu-Eu torna-se ciente de Si mesmo na forma de Eu sou. Mas é a mesma Consciência una.

Peter: É um nome para a Consciência? Um rótulo para a Consciência?

Ramesh: Isso mesmo. Um conceito. É por isso que falo sempre que o Eu Sou torna-se um conceito quando você fala sobre ele. Essa pura Ciência (awareness) da Existência é a Verdade, mas a partir do momento que eu falo a respeito dela, Ela se torna um conceito.

Peter: Qual é a relação entre a Consciência e a palavra “Eu”?

Ramesh: Esse é apenas um nome dado para a Consciência.

Peter: Sim, é o que você acabou de chamar de rótulo.

Ramesh: Sim. Você vê, até “Consciência” é um rótulo. “Deus” é um rótulo.

Peter: É confuso usar o “eu” que usamos para nossa individualidade nesse contexto.

Ramesh: Portanto, eu digo Eu-Eu, Eu Sou e eu sou Peter.

Peter: São três “eus” diferentes.

Ramesh: Ou é a mesma Consciência, mas a relevância é para um ponto diferente.

Peter: O último indica o ego.

Ramesh: O último indica o ego.

Peter: O do meio, Eu Sou ...

Ramesh: A Consciência impessoal.

Peter: E o Eu-Eu ...

Ramesh: É a Consciência impessoal antes ...

Peter: Da potencialização, da manifestação.

Ramesh: Sim, correto. De novo, são palavras para explicar a mesma coisa.

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Pergunta: Num certo momento perguntaram para Nisargadatta Maharaj: “Existe algo que seja real nesse jogo?” Ele disse algo parecido com, “A ação do amor.” Foi tudo o que ele disse, eu acho.

Ramesh: A ação do amor? De qualquer forma, o que quer que ele tenha dito, eu lhe digo o que ele estava querendo dizer. (risos)

A questão é: “O que é real?” O que é real é a conexão inseparável entre o real real e o falso real. Tem de haver uma conexão senão seriam dois. Então, o que os mantém juntos, unidos? É o amor. Chame isso de compaixão, de como você quiser, o melhor é não chamá-lo de nada. Isso é o que ele quis dizer.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Lao Tzu - Tao Te Ching


Meus ensinamentos são fáceis de entender

e fáceis de colocar em prática.

Ainda assim, seu intelecto jamais conseguirá capturá-los

e se você tentar praticá-los, irá falhar.


Meus ensinamentos são mais antigos que o mundo.

Como pode você compreender seu significado?


Se quiser me conhecer,

olhe dentro de seu coração.


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Não saber é o conhecimento verdadeiro

Presumir saber é uma doença.

Primeiro perceba que você está doente,

depois poderá sair em busca da cura.


O mestre é seu próprio médico

Ele curou-se de todo saber.

Portanto, ele é verdadeiramente completo.