quinta-feira, 23 de abril de 2009

G. I Gurdjieff - O sono desperto

A fim de compreender qual é a diferença entre os estados de consciência, vamos voltar para o primeiro estado de consciência que é o sono. Este é um estado de consciência totalmente subjetivo. Um homem está imerso em sonhos, se ele se lembra dos sonhos ou não, não importa. Mesmo que algumas impressões reais chegarem a ele, como sons, vozes, calor, frio, a sensação de seu próprio corpo, despertam nele apenas imagens subjetivas fantásticas. Então, um homem acorda. À primeira vista esse é um estado de consciência bem diferente. Ele pode mover-se, pode conversar com outras pessoas, pode fazer cálculos futuros, pode ver o perigo e evitá-lo e assim por diante. É óbvio que ele está em uma posição melhor do que quando ele estava dormindo. Mas se formos um pouco mais profundamente nas coisas, se dermos uma olhada para o seu mundo interior, em seus pensamentos, sobre as causas de suas ações, veremos que ele está quase no mesmo estado de quando ele está adormecido. E é ainda pior, porque no sono ele está passivo, isto é, ele não pode fazer nada. No estado desperto, porém, ele pode fazer alguma coisa o tempo todo e os resultados de todas as suas ações refletirão sobre ele ou sobre os que estão em torno dele. E no entanto ele não lembra de si mesmo. Ele é uma máquina, tudo acontece com ele. Ele não pode parar o fluxo de seus pensamentos, ele não consegue controlar sua imaginação, suas emoções, sua atenção. Ele vive em um mundo subjetivo de 'eu amo', 'eu não amo', 'eu gosto' ,'eu não gosto', 'eu quero', 'eu não quero', isto é, do que ele acha que ele gosta, do que ele pensa que não gosta, do que ele pensa que ele quer, do que ele acha que ele não quer. Ele não vê o mundo real. O mundo real está escondido dele pelo muro da imaginação. Ele vive no sono. Ele está adormecido. O que é chamado de "clara consciência" é um sono e um sono muito mais perigoso do que dormir à noite na cama.

Vamos tomar um evento na vida da humanidade. Por exemplo, a guerra. Há uma guerra em curso no momento. O que isso significa? Significa que vários milhões de pessoas adormecidas estão tentando destruir vários milhões de outras pessoas adormecidas. Eles não fariam isso, naturalmente, se viessem a acordar. Tudo o que ocorre é devido a esse sono. Ambos os estados de consciência, o sono e o estado de vigília, são igualmente subjetivos. Apenas ao começar a lembrar de si mesmo um homem realmente desperta. E então tudo que o cerca na vida adquire um aspecto diferente para ele e um significado diferente. Ele vê que é a vida de pessoas adormecidas, uma vida em sono. Tudo o que dizem os homens, tudo o que eles fazem, eles dizem e fazem no sono. Tudo isto não pode ter qualquer valor. Apenas o despertar e o que conduz ao despertar tem um valor na realidade. Quantas vezes tenho sido perguntado aqui se as guerras podem ser interrompidas? Claro que podem. Para isso é necessário apenas que as pessoas despertem. Parece uma coisa pequena. Isso no entanto, é a coisa mais difícil que pode haver, porque este sono é induzido e mantido por todo o entorno da vida, por todas as condições que nos cercam.

Como uma pessoa pode despertar? Como pode escapar deste sono? Essas questões são as mais importantes, as mais vitais com que jamais um homem possa se confrontar. Mas antes disso, é necessário estar convencido do próprio fato do sono. Mas só é possível ser convencido disso quando se tenta despertar. Quando um homem compreende que ele não lembra de si e que lembrar de si significa despertar em certa medida, e quando, ao mesmo tempo vê por experiência como é difícil lembrar de si mesmo, ele compreende que não pode despertar simplesmente por ter o desejo de fazê-lo. Podemos afirmar ainda mais precisamente, que um homem não pode despertar por si mesmo. Mas, digamos, se vinte pessoas fazem um acordo de que aquele que despertar primeiro deve acordar o resto, elas já têm alguma chance. Mesmo isso, porém, é insuficiente, porque todos os vinte podem adormecer ao mesmo tempo e sonharem que estão despertando. Por isso, ainda mais é necessário. Devem ser cuidados por um homem que não esteja dormindo ou que não dorme tão facilmente como eles, ou que dorme conscientemente quando é possível, quando isso não fizer mal nenhum, quer para si ou para outras pessoas. Eles devem encontrar tal homem, contratando-o para acordá-los e não permitindo que adormeçam novamente. Sem isso é impossível despertar. Isso é o que deve ser entendido.

É possível pensar por mil anos, é possível escrever bibliotecas inteiras de livros, criar teorias aos milhões, tudo isso no sono, sem qualquer possibilidade de despertar. Pelo contrário, esses livros e essas teorias, escritos e criados no sono, irão meramente colocar as outras pessoas para dormir e assim por diante. Não há nada de novo na idéia do sono. As pessoas têm sido avisadas praticamente desde a criação do mundo que elas estão dormindo e que devem acordar. Quantas vezes isso é dito nos Evangelhos, por exemplo? "Desperte", "Vigiai", "Não durmais". Os discípulos de Cristo, dormiram mesmo quando ele estava orando no Jardim do Getsêmani pela última vez. Está tudo lá. Mas os homens compreendem? Os homens tomam simplesmente como uma forma de linguagem, como uma expressão, como uma metáfora. Eles falham completamente em entender que isso deve ser interpretado literalmente. E mais uma vez, é fácil perceber por quê. Para entender isso literalmente é necessário despertar um pouco, ou pelo menos tentar despertar. Digo-lhes de verdade que me foram perguntadas várias vezes por que nada é dito sobre o sono nos Evangelhos. Embora isso seja falado ali quase em cada página. Isso mostra simplesmente que as pessoas lêem os Evangelhos no sono. Enquanto um homem dorme profundamente e está inteiramente imerso em sonhos, ele não pode sequer pensar sobre o fato de que ele está dormindo. Se ele pensasse que está dormindo, ele despertaria. Então, tudo continua. E os homens não têm a menor idéia do que estão perdendo por causa deste sono. Como já disse, da maneira que ele está organizado, isto é, sendo como a natureza o criou, o homem pode ser um ser autoconsciente. Assim foi criado e é assim ele nasceu. Mas ele é nascido entre pessoas adormecidas, e, claro, ele adormece entre elas no mesmo momento em que deveria ter começado a ser consciente de si mesmo. Tudo tem uma mão nesta história: a imitação involuntária dos mais velhos por parte da criança, sugestão voluntária e involuntária, e aquilo que é chamado de "educação". Cada tentativa de despertar por parte da criança é imediatamente interrompida. Isso é inevitável. E muitos esforços e uma grande quantidade de ajuda são necessários para despertar mais tarde, quando milhares de hábitos compelidores do sono foram acumulados. E isso acontece muito raramente. Na maioria dos casos, um homem, quando ainda criança já perde a possibilidade de despertar e vive no sono durante toda a sua vida e no sono ele morre. Além disso, muitas pessoas morrem bem antes de sua morte física.